A GUERRA DO VIETNAM
Glauber Rocha
EXIBE-SE no Brasil o filme norte-americano Apocalypse Now, produzido, co-escrito e dirigido por Francis Ford Coppola, considerado o gênio contemporâneo de Hollywood.
O co-roteirista escolhido para adaptar a novela The Heart of Darkness, do romancista polonês Joseph Conrad (1857-1924), foi John Milius, cuja fama se deve às suas autoproclamações fascistas em tudo que fala, escreve ou filma. A escolha de Joseph Conrad e do poeta inglês T.S. Eliot como referências para o apocalipse cinematográfico denota a nostalgia de Coppola pela literatura colonialista.
Conrad, que participou da empreitada colonizadora da Inglaterra na África, Ásia e América, escreveu romances que justificavam crimes em nome de utopias. Thomas Morus revelou que o Eldorado existia em algum "inferno tropical". O mito da Terra Prometida alimentou o protestantismo anglo-saxão, assim como o mito do Graal sustentou o catolicismo latino.
A estratégia colonizadora é conquistar terras "além de Taprobana", como cantou Luís de Camões em Os Lusíadas, obra que, de passagem, menciona o Vietnã. Qualquer crime é justificável se seus autores invocarem valores superiores à vida.
Tudo é relativo (vida e morte), exceto Deus. Esse absolutismo gerador de utopias legitima atrocidades. Para conquistar Jerusalém e territórios judaicos, palestinos e árabes, a Igreja Católica militarizou os cristãos. As Cruzadas invadiram África e Ásia, expandindo a Fé e o Império. Os inimigos, os "infiéis", eram vistos como demônios a serem exterminados. A guerra colonial europeia na África, Ásia e Américas foi santificada.
Moisés comanda a Inglaterra na conquista da América do Norte. Cristo comanda Espanha e Portugal na conquista das Américas Central e do Sul. Os deuses afro-asiáticos e latinos, derrotados, são humilhados por Moisés e Cristo.
Os Estados Unidos surgiram como uma democracia capitalista fruto do protestantismo reformista, em oposição ao catolicismo monárquico da Europa latina. Enquanto os ibéricos católicos exploravam sem construir, os protestantes anglo-saxões estruturaram seu mercado interno, consolidando um sistema psicoeconômico-político-religioso.
Superando a Europa (Oropa, França & Bahia), os EUA iniciaram um novo ciclo imperial até o primeiro abalo causado pela Revolução Soviética em 1917. Após a Segunda Guerra, os norte-americanos apropriaram-se de metade da Europa, enquanto a outra ficou sob domínio soviético. Ironia: Hitler levou consigo o imperialismo britânico para o inferno.
Fragmento Adicional (Continuação):
A patrulha entra no rio Mekong, metaforicamente, e se dirige, também metaforicamente, às ruínas de Angkor, ao sul do Camboja, onde vive Kurtz, o Diabo. Metonimicamente, Francis viaja do seu ego culpado ianque (o Capitão Willard) ao seu ego puro ianque (Marlon Brando). Na ótica satânica de John Milius, o Bem é impuro. Por isso, Willard, agente do Bem, assassina uma vietnamita ferida. O Mal, Brando, é puro. Por isso, recita T.S. Eliot. O Mal é intelectual. O intelectual tem direito de encarnar o Mal. O Mal é divino. O Bem é maldito.
Comentário:
O texto de Glauber Rocha é uma crítica contundente ao colonialismo e à sua representação no cinema, especialmente em Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Rocha estabelece um paralelo entre a narrativa do filme — baseada em Heart of Darkness, de Joseph Conrad — e a história real do imperialismo ocidental, destacando como a violência colonial foi justificada por mitos religiosos e utopias civilizatórias.
Crítica ao Colonialismo Cultural: Rocha acusa Coppola e Milius de reviverem uma visão romantizada do colonialismo, usando Conrad e T.S. Eliot como símbolos de uma literatura que legitimou a dominação. A escolha desses autores reflete, segundo ele, uma nostalgia pelo período em que o Ocidente impunha sua "missão civilizatória" através da força.
Religião e Imperialismo: O texto traça uma linha histórica que liga as Cruzadas, a conquista das Américas e o imperialismo moderno, mostrando como a religião (seja católica ou protestante) foi instrumentalizada para justificar a exploração. Os EUA, herdeiros do protestantismo, são vistos como continuadores desse projeto, mas com uma máscara de progresso.
A Inversão Moral em Apocalypse Now: Rocha destaca a contradição no filme: o "Bem" (Willard) comete atrocidades, enquanto o "Mal" (Kurtz/Brando) é retratado como um intelectual puro. Essa ambiguidade reflete, para ele, a hipocrisia da narrativa colonial, onde a violência é glorificada sob o pretexto de ordem ou salvação.
Glauber Rocha e o Cinema Engajado: Como cineasta da Tropicália e do Cinema Novo, Rocha sempre defendeu uma arte que denunciasse as estruturas de poder. Aqui, ele faz do texto uma arma política, expondo como o cinema hollywoodiano reproduz ideologias perversas, mesmo quando pretende criticá-las.
O texto é uma reflexão ácida sobre como a cultura (literatura, cinema) pode ser usada para perpetuar visões distorcidas da história. Rocha desafia o espectador a questionar não apenas Apocalypse Now, mas as narrativas que moldam nossa compreensão do colonialismo e da violência. Sua escrita, cheia de ironia e referências históricas, mantém-se relevante para debates sobre imperialismo e representação artística.
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