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terça-feira, junho 17, 2025

"Freud no divã de Hollywood",

 publicado no Jornal do Brasil, em 17 de junho de 1992:

Carlos Helí de Almeida



A comunidade gay vislumbrou altas doses de preconceito. Os moralistas enxergaram libertinagem demais. Poucos se deram conta, no entanto, de que Instinto Selvagem (Basic Instinct), o último furacão hollywoodiano, é a mais nova produção a pintar os profissionais da mente com cores fortíssimas. E comprometedoras. No filme de Paul Verhoeven, Catherine Tramell (Sharon Stone) e Beth Garner (Jeanne Tripplehorn) usam à sua maneira as teorias de Freud e se metem em crimes hediondos. Ambas com inteligência e compulsão assassina só comparáveis à sanha de Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), o psiquiatra e double de psicopata de O Silêncio dos Inocentes. O cinema criou esses e outros personagens da era análise e não guarda nenhum complexo de culpa por alçá-los ao posto de estrelas.

A última moda de Hollywood são os supershows, dotados de inteligência descomunal ou de incrível ascendência sobre seus pacientes. Mas a relação entre cinema e psicanálise sempre foi meio instável. O sujeito atrás do divã pode surgir tão desequilibrado quanto o analista de dupla personalidade de Vestida para matar (de Brian de Palma), ou o desesperantemente sincero, bum, toc... das fraquezas humanas, como o personagem-título de Freud, além da alma, filme em que o diretor John Huston resumiu a biografia do próprio pai da psicanálise. Freud até explicaria. Mas o cinema se recusa a pagar a conta das sessões.


GALERIA DE 'PSIS'

Catherine Tramell (Sharon Stone), de Instinto Selvagem. Formada em literatura e psicologia, usa o que aprendeu para escrever best sellers e manipular pessoas. Não necessariamente nessa ordem. É superinteligente, segura e, por isso mesmo, suspeita-se que, por pura desafia à própria genialidade, esteja envolvida em mortes violentas.

Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), de Instinto Selvagem. É psicóloga da polícia de São Francisco. Foi colega de banco e de cama de Catherine Tramell, em seus tempos de faculdade, relação até hoje mal resolvida. Mantém uma relação meio instável com o detetive Nick Curran (Michael Douglas), o que não a livra de ser suspeita dos crimes.

Isaac Barr (Richard Gere), de Desejos. Bem-sucedido analista de São Francisco, é enganado por uma falsa paciente (Uma Thurman) e atirado para os braços de sua sedutora irmã (Kim Basinger), a mulherzinha de humor e indesejável mafioso. Para desmoralizar ainda mais a classe, o sujeito se esquece de um dos casos básicos estudados por Freud.

Susan Lowenstein (Barbra Streisand), de O Príncipe das Marés. Uma das mais bem pagas (US$ 100, por sessão!) psicanalistas de Nova Iorque. Seus honorários só não são maiores do que sua ascendência sobre os pacientes. E o liberalismo: põe a ética profissional para o escanteio e se envolve afetiva e sexualmente com o analisado (Nick Nolte).


Jane Grierson (Dianne Wiest), de Mentes que Brilham. Assiste com as crianças de que trata em seu instituto, que também é uma superdotada. A obsessão pelo trabalho, no entanto, a transformou numa figura solitária e carente. A superpsicanalista infantil tem o possível hábito de exercer o reprimido instinto materno com os analisados pacientes-mirim.

Cinema mostra ‘psis’ como manipuladores e assassinos

Susana Schild


Pelás barbas do profeta Freud. Depois dos duros embates que o fundador da psicanálise enfrentou em vida, também não encontra sossego na posteridade. Sua revolucionária teoria sobre os sonhos e o inconsciente dilui-se em um vale-tudo prático e teórico. É numa época em que o marketing é a alma do negócio, seus seguidores têm tido representações nada recomendáveis nas telas. Para Hollywood, engenheram também calada no princípio dos sonhos, o vilão pós-moderno tem muito mais credibilidade se tiver um PhD em Psicologia.


Filmes recentes, como O Silêncio dos Inocentes, Instinto Selvagem, Mentes que Brilham, O Príncipe das Marés e Desejos, com protagonistas da variedade “psis” (psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, psicoterapeutas etc.), podem faturar alto nas bilheterias, mas honram índices ínfimos de rigor, competência e equilíbrio esperados da categoria. Pior. Esses filmes inquietos podem revelar-se assassinos com mirabolantes requintes de perversidade ou simplesmente se colocarem à léguas dos discernimentos e dos códigos morais freudianos. Uma coisa, porém, tem em comum: a sofisticada manipulação da mente alheia. E, geralmente, a manipulação da mente alheia.


Depois de assistir a Instinto Selvagem, a psicoterapeuta Maria Aparecida Henriques observou: “Me chocou a atuação fria e o filme tinha irritado tanto as entidades de homossexuais, que ninguém protestou no Conselho”. A presença de duas psicólogas em um mesmo filme — uma formada — como possíveis assassinas.” E ponderou: “As pessoas mal-informadas que usam ou precisam de tratamento se sentem ameaçadas por essa representação totalmente fantasiosa do profissional num campo propenso de manipulação, principalmente no que se refere à sexualidade”.


Para os psicanalistas mais severos, a manipulação da “psi” nas telas está na ponta de uma reação: “Até alguns anos atrás, o psicanalista era uma figura muito idealizada, cercada de mistério. E hoje vem representado por vários filmes como um ser perverso e manipulador.” Perestrello atribui essa “à proliferação de sociedades formadoras de analistas sem preparo, que têm provocado crises muito diversas”. Por esta banalização, enfatiza Perestrello, “todo mundo é analista, independentemente do fato de ter ou não um título”. E pontifica: “Só pode tratar do outro quem fez um bom tratamento”.


Para o psicanalista Jeremias Ferraz já não se distingue com a imagem perjorativa da classe nas telas: “O psicanalista sempre foi objeto de chiste, de deboche, e muito difícil ver um filme que tenha uma temática do profissional, que mobilize muito”, diz. A única exceção recente, segundo Jeremias Ferraz, se veste na cabeça de quem não foi analisado. Segundo ele, um experiente analisando, não ridicularizaria os analistas, como no caso de Catherine Tramell (Instinto Selvagem). “Esse personagem não é analista. Como Freud dizia, muitos psicopatas se fazem de psicanalistas.” Sigmund Perestrello lembra ainda que muitos recentes vêm sendo formulados de ações de danos morais “por filmes sobre advogados e políticos corruptos”. Deixando, deste modo, a tela está para Freud um prato feito.

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