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terça-feira, dezembro 09, 2025

Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975)

Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975) é um filme icônico dirigido por Sidney Lumet e estrelado por Al Pacino, baseado em um evento real ocorrido em 1972 no Brooklyn, Nova York. O filme mistura tensão, humor ácido e crítica social, tornando-se um clássico do cinema dos anos 1970.
🎬 Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975): análise, curiosidades e legado do clássico de Sidney Lumet

Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975) é um dos filmes mais marcantes dos anos 1970 e permanece atual até hoje. Dirigido por Sidney Lumet e estrelado por Al Pacino em uma de suas atuações mais intensas, o longa é baseado em um assalto real ocorrido em 1972 no Brooklyn, Nova York. A produção mistura drama, humor ácido e crítica social, consolidando-se como um clássico absoluto do cinema americano.

Sinopse de Um Dia de Cão

Na trama, Sonny Wortzik (Al Pacino) e seu cúmplice Sal (John Cazale) tentam assaltar um banco no Brooklyn. O que deveria ser um roubo rápido se transforma em um cerco policial que dura mais de 12 horas, transmitido ao vivo pela televisão. Com a imprensa em peso e uma multidão do lado de fora, Sonny se torna, inesperadamente, um “herói popular”, especialmente quando sua motivação é revelada: conseguir dinheiro para pagar a cirurgia de mudança de sexo de seu parceiro (interpretado por Chris Sarandon).

Baseado em fatos reais

O roteiro de Dog Day Afternoon é inspirado no artigo “The Boys in the Bank”, publicado pela revista Life. O texto narrava o assalto cometido por John Wojtowicz, cuja história serviu de base para o personagem Sonny. Essa ligação com a realidade trouxe ainda mais impacto ao filme, que mescla ficção com fortes elementos jornalísticos e sociais.

Reconhecimento e prêmios

O longa recebeu 6 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator (Al Pacino) e Melhor Roteiro Original (que acabou vencendo). O trabalho de Sidney Lumet foi amplamente elogiado pela forma crua e realista de retratar o episódio, sem cair em estereótipos de filmes de assalto.

Legado e impacto cultural

Um dos momentos mais memoráveis é quando Sonny grita “Attica!”, em referência ao massacre da prisão de Attica em 1971, denunciando abusos policiais. A cena se transformou em um símbolo de protesto e permanece até hoje como parte da cultura pop.

Com sua mistura de cinema político, tensão dramática e personagens complexos, Um Dia de Cão segue como uma obra indispensável para quem estuda ou ama a história do cinema.

Indicado a 6 Oscars, incluindo Melhor Roteiro e Melhor Ator (Pacino).

Baseado no artigo "The Boys in the Bank", sobre o assalto real de John Wojtowicz (que inspirou Sonny).

A frase "Attica!" entrou para a cultura pop como grito de protesto contra abuso policial.

 

segunda-feira, dezembro 08, 2025

O Agente Secreto

 Um thriller político de 2025 com 99% de aprovação no Rotten Tomatoes pode ser o melhor filme do ano.



POR PAULI POISUO   (via SlashFilm)

O mundo está cheio de filmes fantásticos que poucas pessoas viram, e cada vez mais filmes de qualidade desaparecem no limbo das joias esquecidas. Para salvar um dos melhores filmes de 2025 dessa pilha, permitam-me dedicar um momento para elogiar o incrível thriller "O Agente Secreto", do roteirista e diretor Kleber Mendonça Filho ( também responsável por "Bacurau", um dos faroestes mais estranhos que você já viu ). 

O filme é presença constante em diversas listas de "melhores do ano", além de ser a escolha do Brasil para o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2026 — sem mencionar o fato de ser um dos grandes favoritos a levar a estatueta para casa. Embora ainda não seja muito conhecido pelo público americano, "O Agente Secreto" já provou seu valor inúmeras vezes. Mendonça Filho foi eleito Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2025, com o astro Wagner Moura ("Narcos") também levando o prêmio de Melhor Ator e o filme conquistando o Prêmio FIPRESCI. 



"O Agente Secreto" também recebeu aclamação da crítica, com uma pontuação quase perfeita de 99% no Tomatometer do Rotten Tomatoes. Em outras palavras, há uma boa chance de estarmos testemunhando o nascimento de um clássico — um filme com um pedigree que lhe confere um forte argumento para ser considerado o melhor filme do ano. 

Diversos dos melhores thrillers políticos  e  filmes de espionagem de todos os tempos  se inspiram em eventos reais de grande escala, como a Guerra Fria. Embora aparentemente trate tanto de política quanto de espionagem, "O Agente Secreto" evita em grande parte as armadilhas de ambos os gêneros e se concentra em um período muito específico e turbulento em um país muito específico — a saber, a ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985 e envolveu graves violações dos direitos políticos e humanos dos cidadãos. 

Ambientado em 1977, "O Agente Secreto" nos transporta para um momento em que esse período já devastou as pessoas por anos, mas ainda não há fim à vista. O foco principal é um professor chamado Armando (Moura), cuja missão misteriosa e inimigos poderosos formam um núcleo cativante — um ponto sensível de aparência gentil, porém vulnerável, em meio ao caos. No entanto, a verdadeira estrela do filme é o próprio caos. "O Agente Secreto" apresenta refugiados, assassinos de aluguel desesperados e pessoas justificadamente paranoicas que tentam (e geralmente falham) sobreviver em um mundo onde vidas humanas valem menos que nada. 

camisa da Chico Rei


O resultado final é uma descrição fascinante de um período turbulento e insensato da história, do qual poucas pessoas fora da América do Sul têm muito conhecimento. Ao adicionar toques de surrealismo e permitir que a história se desenrole em seu próprio ritmo — e até mesmo se recusando a detalhar alguns dos eventos brutais e estarrecedores que retrata — "O Agente Secreto" se eleva acima dos thrillers comuns. Não é tanto um filme, mas sim um vislumbre de memórias febris de uma época muito ruim da história, o que o torna ainda mais cativante. 




Robert de Niro

 Um domador de personagens que rejeita rótulo de ‘monstro sagrado’



Parceria perfeita com Scorsese e Brian De Palma
Ely Azeredo

(O GLOBO - sexta-feira, 6 de março de 1992.)

Robert De Niro já foi comparado a Marlon Brando, pelo talento, pelo carisma e pelas múltiplas personalidades exibidas na tela. O paralelo, porém, não resiste a maior exame. Com raras exceções (como o Dom Corleone de “O poderoso chefão”), as transformações da figura de Brando acompanharam mutações físicas do ator. E Brando, que popularizou o “símbolismo sexual” ao sair do Actor’s Studio e o empregou para chegar à mitologia de Hollywood, se rendeu ao conceito clássico de “monstro sagrado” no cinema. Numa tentativa de “sagrado”, batalha pela condição de “monstro”. Até as deformações físicas que busca (“O Touro Indomável”, “Os Intocáveis”, “Tempo de despertar”) para melhor expressar a síntese de seus personagens o parecem distinguir de Brando.

“Há várias pessoas dentro dele”, disse Elia Kazan. “Ele se realiza transformando-se em outros.”



Robert De Niro nasceu há 48 anos no bairro de Greenwich Village, Nova York, onde viviam seus pais, pintores, que se separaram quando ele ainda era criança. A mãe queria que ele fosse biólogo. Mas, aos 10 anos, De Niro já tinha a arte na cabeça, a ideia do teatro no coração. Estudou balé, integrou um disputado curso de arte dramática de Stella Adler, e depois passou pelo Actor’s Studio, de onde saíram os mitos Brando, James Dean, Montgomery Clift, Paul Newman, entre outros. Mas seu “star system” parece ter sido recusado. Aceita ter experiência de vida como base de interpretação, e chega à consagração com dois filmes de série “B” de Brian De Palma, ainda em 1968: “The wedding party” e “Hi, Mom!” (os dois filmes com Palma, mas também com De Niro, são “Greetings” (que proporcionou ao diretor um prêmio no Festival de Berlim) e sua continuação, “Hi, Mom!”). Em 1973, com “Caminhos perigosos” (“Mean streets”) — premiado pela crítica de Nova York — tem início sua integração afetiva e profissional com o clã de Martin Scorsese. Consagra-se com o cineasta, e se acredita em muita pesquisa e muito método: para poder mergulhar no mundinho da Little Italy nova-iorquina, ele conversando com delinquentes, observando o comportamento psicológico dos personagens. Quando Coppola o convida para “O poderoso chefão” — parte II — fundando o primeiro “Chefão”, vai à Sicília e aprende o dialeto local. Trabalha como chofer de táxi para viver o papel-título de “Taxi driver” — seu personagem mais antológico, símbolo do sob disfarce do americano.



A convicção de seu trabalho em “O franco-atirador”, em 1978, lhe deu o Oscar. Nesse tempo se conviveu com um drama pessoal: a morte de seu pai, em Ohio, aparentemente com câncer.

Aprendeu a tocar saxofone para fazer o músico de “New York, New York” e usar o play-back e outras técnicas tornassem talvez suportável seu esforço. Sua crise no hospital de “Tempo de despertar” foi elogiada por todos os colegas de elenco e os médicos.

Enfim, um “monstro” também sob outro disfarce. Foi De Niro que leu a autobiografia de Jake La Motta e deu a Scorsese a ideia de “O Touro Indomável”. Sua dedicação ao personagem foi máxima, sua aptidão para revelar as marcas internas dos personagens. Segundo La Motta, “ele devia ser um psiquiatra. Descobriu coisas sobre mim que nem eu mesmo sabia.”

A consagração não conteve a versatilidade e a presença de Robert De Niro. De “Era uma vez na América”, de Sergio Leone, a “O Poderoso chefão – parte II”, passando por “1900” e os “companheiros” (outras parcerias com Scorsese), seu talento foi reconhecido em vários filmes. O gênero sempre acrescentando alguma coisa à sua criação. Agora, De Niro atua como empresário produtor, em seus estúdios próprios — Tribe — em Nova York.

domingo, dezembro 07, 2025

PINCOYA

 PINCOYA


Chiloé: Historia, Mitología, Artilugios y Costumbres, Comidas Típicas, Medicina Popular, Supersticiones)

(Pinda, Picaflor)

Mujer de belleza extraordinaria en la cual se personifica la fertilidad de las costas de Chiloé y sus especies marinas.

A ella se le atribuye la escasez o abundancia de peces y mariscos.

La Pincoya suele aparecer en las costas con el Pincoy (su marido) el cual se sienta a cantar sobre una roca en donde atrae a la Pincoya y la envuelve con su voz melodiosa haciéndola entrar en una danza frenética, sensual y maravillosa. Si baila vuelta hacia el mar habrá mucha abundancia y si bailase vuelta hacia la playa habrá escasez.

Pescadores la han visto en los roqueríos peinando su cabellera larga. Cuando los chilotes naufragan la Pincoya acude a su auxilio.


🇧🇷 Tradução para o português:

PINCOYA
(Pinda, Beija-flor)

Mulher de beleza extraordinária, na qual se personifica a fertilidade das costas de Chiloé e de suas espécies marinhas.

A ela se atribui a escassez ou abundância de peixes e mariscos.

A Pincoya costuma aparecer nas costas junto com Pincoy (seu marido), que se senta para cantar sobre uma rocha, atraindo a Pincoya e envolvendo-a com sua voz melodiosa, fazendo com que ela entre numa dança frenética, sensual e maravilhosa.
Se ela dança voltada para o mar, haverá grande abundância.
Se ela dança voltada para a praia, haverá escassez.

Pescadores a viram entre as rochas penteando seus longos cabelos. Quando os chilotes naufragam, a Pincoya acorre em seu auxílio.


🔍 Análise interpretativa

🌊 Personificação da natureza e fertilidade

A Pincoya é uma figura mitológica que representa a fertilidade do mar, funcionando como um símbolo feminino ligado à abundância dos recursos naturais, especialmente peixes e mariscos — essenciais à economia e à sobrevivência costeira.

💃 Dança como ritual cósmico

Sua dança é um gesto ritualístico com poder de impactar diretamente o equilíbrio ecológico. A direção da dança (mar = fartura / praia = escassez) reforça a ligação entre os atos simbólicos e as consequências no mundo natural.

🧜‍♀️ Paralelos com mitos universais

  • Como as sereias da mitologia grega, ela é associada ao mar, à beleza e ao canto encantador (através do Pincoy).

  • Seu gesto de pentear os cabelos evoca imagens semelhantes às ninfas aquáticas em várias culturas, como as Iemanjás afro-brasileiras.

👩‍❤️‍👨 Pincoya e Pincoy: dualidade mística

O fato de a dança da Pincoya ser ativada pela canção do marido, o Pincoy, mostra uma dinâmica complementar de gênero e força mitológica — o canto masculino desperta o movimento feminino criador.

Protetora dos navegantes

Além de trazer fartura, a Pincoya também exerce papel de salvadora: ajuda os náufragos, o que a aproxima de figuras maternais ou divinas ligadas à proteção dos pescadores.

sábado, dezembro 06, 2025

Silent Night, Deadly Night (1984) - Natal Sangrento

“Eles acharam que poderiam fazer isso sem serem pegos.
Mas quando fazemos algo travesso, sempre somos pegos.
Então, somos punidos.
A punição é absoluta, a punição é boa.”

Silent Night, Deadly Night (1984), dir. Charles E. Sellier Jr.


 Silent Night, Deadly Night (1984)

O longa de Charles E. Sellier Jr. tornou-se um dos slashers mais controversos dos anos 80, não tanto por seu conteúdo — violento, mas alinhado ao que o gênero já apresentava — e sim por sua campanha de marketing e pela figura do Papai Noel transformado em assassino, algo que gerou protestos, boicotes e até a retirada temporária do filme de cartaz nos EUA.

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FIURA

 


Chiloé: Historia, Mitología, Artilugios y Costumbres, Comidas Típicas, Medicina Popular, Supersticiones

📜

Fiura = Feiura
Mulher repugnante, horrivelmente feia, de baixa estatura e hálito fétido.
Vive nos bosques, perto dos "Hualdes", nas vertentes ou cascatas, onde se penteia com prazer usando um pente de cristal.
Usa um vestido vermelho chamativo. Após o banho, senta-se sobre o musgo e permanece nua por horas.

É a personificação feminina da perversidade; incansável noiva dos solteiros.

Delicia-se em fazer o mal àqueles que a rejeitam — sejam humanos ou animais.
Seu hálito torce os seres: “os agarra”; para alguns, ela é filha da “Condená”, daí expressões como "foi tentado pela condenada", "olha a fiura", "condenado".

A Fiura tem grande poder de sedução, e uma vez saciado seu apetite sexual, enlouquece a vítima.
Seu hálito — chamado "Mal de Ar" — pode causar ciática, paralisia, deixar os animais mancos ou quebrados.

Se alguém deseja zombar de outro, grita: “onde vai essa fiura?”.


🔍 Análise:

A Fiura é um arquétipo monstruoso da feminilidade marginal, fundindo erotismo, feiura, loucura e doença. Ela subverte o ideal feminino clássico — é sedutora, mas feia; desejante, mas destrutiva.
Isso a aproxima de figuras como a Lâmia ou a Medusa.

Seu poder sexual, seguido de destruição, remete à antiga narrativa da mulher como tentadora e punitiva.
O “Mal de Aire” que ela transmite é uma metáfora ancestral para doenças inexplicáveis, sobretudo nas culturas rurais.

sexta-feira, dezembro 05, 2025

Monólogo "Ventoinha" de Coelho Netto

"Ventoinha" de Coelho Netto


Em 1975, estudava no Colégio São josé, em Petrópolis (RJ). A professora de teatro 
era a fantástica Henriqueta Bortolotti que marcou história na cultura petropolitana. 
Enfim, tive um desafio aos 11 anos: fazer o monólogo Ventoinha.
minha mãe, Martha Bulgarelli, copiou a mão todo o texto.  
Lendo e relembrando, fico orgulhoso daquele menino. 
Obrigado, tia Henriqueta!  

VENTOINHA

(Monólogo de Coelho Netto)

Personagem:
Carlos, 12 anos. Maneiras pretensiosas.

Cenário: Sala.

(Entra vagarosamente, sobrepondo um volume, embebido na leitura de uma

 revista ilustrada. Detém-se em meio da cena. Com um momo, menenando a 

cabeça em aceno negativo.)

CARLOS:
— Não! Não vão bem. Nesse andar dão com os burros n'água. Falta-lhes uma 

cabeça, um Napoleão. Esta guerra está a pedir um gênio como Alexandre, César 

ou Napoleão. Estava não val. E pena que eu seja ainda tão criança. Ah! Se eu 

fosse homem e eles me confiassem o comando das tropas...

(Sem deixar a revista, mete a mão no bolso e tira uma touca de criança com a 

qual espoia o rosto. Sentindo-lhe a aspereza das rendas.)

— Que é isto? Uma touca! Esta minha cabeça! Que hei de fazer? É de família. 

Meu tio Sarajuba era tão distraído que, querendo estudar medicina, para que 

tinha grande vocação e dedo, matriculou-se na Escola Politécnica e, quando 

se formou, em vez de exercer a engenharia, abriu um consultório, receitando 

aos doentes fórmulas algébricas e resolvendo casos de cirurgia com uma das 

quatro operações.

Lembro-me ainda de lhe haver ouvido afirmar que o que havia de melhor para a

 coqueluche era um xarope de raiz quadrada. Se o não tivessem recolhido ao

 hospício, a medicina seria hoje um ramo das matemáticas superiores. Deram-no por doido, a ele, um sábio!

Que se há de fazer? É o destino de todos os grandes homens, os eternos incompreendidos. (Com languidez moderna.) Por exemplo. Quem há aí que me

 entenda? Ninguém!

Lembro-me que, desde pequenino, de manhã, fui sempre tão distraído que 

trocava a noite pelo dia, não a deixando pregar olho um segundo. Por isso fui

 desmamado antes de completar oito meses. Comecei a sofrer muito cedo, 

mais cedo do que meu tio. (Com fúria!)

A distração é o desprendimento do espírito: O homem distraído eleva-se do 

mundo material, abandona a terra pelo espaço, despreza as mesquinharias do

 plano inferior pela grandeza do ideal, como a ave remonta em vôo altivo às 

nuvens. (Figueira vaidoso.) Algumas vezes, sucede-lhe cair, como se deu com

meu tio Serapito: mas se dá vai longe! (Outro tom.)

No colégio, os lentes, os bedéis, os colegas todos me tratam de “ventoinha”. 

Pensam que me incomodo! (Encolhe os ombros com altivez.) Pois sim! Inveja! 

Se me distraio em uma conta, na análise de um trocado, na definição de uma

 regra, é contar logo com a gargalhada. Os medíocres não compreendem, nem 

podem compreender os espíritos de eleição.

Aritmética, gramática, geografia, física, química… que valem tais lubrocracias?

 O gênio não se prende a regras. O sol precisa de excitação ou de querosene

 para alumiar? Não! Alumia porque é sol. Assim o homem de gênio: sabe porque

 sabe.

Nós me procurei com gramáticas e números e João, escrevo, forço todo que

 gemo. Colaboro em vários jornais e se os meus artigos não saem é por falta de

espaço. Riem de mim quando não atino, de pronto, com o sujeito da oração.

 Ou um sujeito! Que eu um sujeito? Não é que eu não saiba, é que me perco, 

distraio-me. Tenho fatos problemas na cabeça…

Outra para-cauda é a tal história dos pronomes. Francamente… Pois com tanta

 coisa séria que há na vida de um homem, ter cabeça para cuidar de pronomes,

 colocando-os à direita ou à esquerda, e vocês, lá porque a gramática assim 

entenda.

Os pronomes que se arranjem, eu é que não hei de andar atrás deles, a dizer-lhes: “Cavalheiro, o seu lugar é aqui, tudo caro você…” ali como quem distribui lugares à mesa.

 Eu faço com os pronomes o que papai faz com os antigos que vêm aqui jantar:

 senta-se e diz-lhes: “Sem cerimónia, como em sua casa!”. E eles arranjam-se.

Depois, distraído como sou… Se não fossem as minhas distrações, eu já estaria

 matriculado na Faculdade de Direito, porque o meu sonho é fazer um túnel qu

e ligue o Distrito Federal a Niterói. (Pausa. Sorriso.)

Ora, aqui está. Vêem? Um bacharel a fazer tantos… É a alma do meu tio Serapito. 

Isso é que me preocupa. Se eu me pudesse dominar, firmando a atenção no que

 faço… Ah! Mas qual! O meu espírito é como um passarinho que se não aquieta em um ramo e só quer voar daqui para ali, ao sol.

Abro um livro, ponho-me a estudar… De repente, as letras começam a mover-se: 

crescem, põem-se a dançar, a correr, e a página transforma-se em uma tela de 

cinema e, em vez de uma descrição geográfica, de uma equação ou de um 

capítulo de história, vejo uma fita de animação causada. Ora, filmes, quando são 

muito longas, fatigam os olhos e fazem dormir, não é verdade?

No dia seguinte, na sala, é aquela certeza: nota má. A culpa é minha? Não. De

quem é? (Espalmando a mão na fronte.) Disto! É do mundo de idéias que tenho

 aqui dentro. O futuro dirá quem sou e o que valho.

(Olhando em volta.) Que vim fazer aqui? (Procura lembrar-se.) Ah! Procuro 

o meu atlas, roubei-o ou deixei? No colégio, com certeza. Também para umas 

terrinhas de nada, um volume daquele tamanho. (Põe-se a procurar por aí e,

 abrindo um deles, descobre um catálogo. Com grande alegria.)

Os meus soldados! Foi mamãe que os escondeu aqui no dia em que levei nota 

tal em geografia. (Penalizado.) Pobres prisioneiros do general. (Outro tom.)

 E isto! Depois dizem que sou vadio. Eu não tinha inclinação é para a guerra.

Estudo batalhas, fico horas e horas à mesa confundindo planos e, também os 

vem executar, aparece José com a toalha, guardanapos, pratos, talheres, para

 pôr a mesa. Se desço à horta para fazer uma trincheira, falta-me logo em cima

Manuel: “Que não! Que tenha pepinos, que não lhe esburague os canteiros,

 não lhe estrague as plantas.”

E estudar? Só querem livros na mão. Os imbecis… Cada qual para o que nasceu.

Entendem que hei de ser médico! Cortam-me as asas e querem que eu voe. 

Pois sim! Soltem-me! Deixem-me liberdade! Deixem-me ir para onde me chama a vocação, para onde me leva o gênio. (Enlevado.) O gênio!

(De repente, prestando atenção.) Vem gente! E mamãe, com certeza. 

(Ao público.)

 Não digam que eu estive aqui a tagarelar com os senhores, senão ela não

 me leva amanhã ao cinema. (Arregalando os olhos.) E vai uma fita!…

(Senta-se, abre o livro que traz debaixo do braço e põe-se a declamar com ênfase.)

"Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda
Mas de tuba canora e belicosa
Que o peito acende, e a cor ao gesto muda."
(Crepúsculo — Coelho Netto)


NOTA DO AUTOR

Preocupado com a formação dos jovens e a educação infantil, Coelho Netto 

escreveu uma série de obras de cunho cívico e moral: A América, A Terra

Fluminense, Centro Fúnebre, Apólogo; Teatro Infantil, A Pátria Brasileira e Brevário

 Cívico.

Preocupado com a falta de textos para as representações escolares,

 escreveu pequenas cenas, monólogos e poemas para serem interpretados por 

crianças, pois se revoltava ao ver “crianças reproduzindo as chalaças 

regamboladas que tanto depravam os nossos teatros”. Esses textos foram

 reunidos num volume — Teatrinho, de onde tiramos o monólogo seguinte.

(Fim do monólogo.)


analise o texto

Análise do Monólogo "Ventoinha" de Coelho Netto

1. Contexto e Objetivo

  • Gênero: Monólogo teatral infantil, parte da obra Teatrinho (1910),

  •  que reúne peças para representações escolares.

  • Propósito: Criticar o ensino tradicional rígido e celebrar a imaginação

  •  infantil, além de satirizar a pretensão intelectual.

  • Tema Central: O conflito entre a criatividade livre da criança e as 

  • expectativas sociais/acadêmicas.

2. Personagem (Carlos)

  • Idade: 12 anos, mas com maneiras afetadas e discurso pretensioso.

  • Características:

    • Distraído: Herdou a excentricidade do tio Serapito (que confundia 

    • medicina com matemática).

    • Sonhador: Planeja "um túnel entre o Distrito Federal e Niterói" e 

    • transforma livros em filmes.

    • Rebelde: Rejeita gramática ("pronomes que se arrangem") e a 

    • carreira médica imposta pela família.

    • Narcisista: Acredita ser um "gênio incompreendido" (como

    •  Napoleão ou seu tio).

3. Estrutura e Linguagem

  • Tom: Alterna entre cômico (ex.: receitar "raiz quadrada" para coqueluche) e lírico (ex.: comparação do espírito com um pássaro).

  • Recursos Estilísticos:

    • Ironia: "A medicina seria hoje um ramo das matemáticas"

    • (critica a racionalidade excessiva).

    • Metáforas: Letras que viram cinema, espírito como passarinho.

    • Intertextualidade: Citação de versos de Crepúsculo (do próprio autor).

  • Ritmo: Frases curtas e exclamativas (agitadas) contrastam com

  •  devaneios poéticos (fluidos).

4. Crítica Social

  • Educação:

    • Escolas reprimem a curiosidade ("cortam minhas asas").

    • Professores ridicularizam Carlos por erros gramaticais, não

    •  valorizando seu pensamento criativo.

  • Família:

    • Pais impõem carreiras práticas (medicina), ignorando seus sonhos.

    • A mãe esconde seus soldados de brinquedo (símbolo da 

    • repressão à imaginação).

5. Simbolismos

  • Ventoinha (título): Metáfora para a mente inquieta de Carlos, que gira 

  • sem controle.

  • Soldados de chumbo: Representam a infância aprisionada pelas regras

  •  adultas.

  • Cinema: A realidade é mais atraente quando transformada pela fantasia.

6. Influências e Originalidade

  • Tradição: Dialogia com o romantismo (genialidade vs. mediocridade) e o modernismo (fluxo de consciência, linguagem coloquial).

  • Inovação: Um dos primeiros textos brasileiros a colocar uma 

  • criança como narrador crítico do mundo adulto.

7. Atualidade

  • Educação: Discussão sobre ensino padronizado vs. criatividade

  •  ainda relevante.

  • Infância: A peça antecipa debates sobre autonomia infantil e TDAH

  •  (embora sem diagnóstico, Carlos exemplifica a mente dispersa).

Conclusão

"Ventoinha" é uma sátira engajada e poética que:

  1. Denuncia a rigidez educacional;

  2. Celebra a infância como espaço de invenção;

  3. Questiona o que é "loucura" (genialidade) ou "vagabundagem" 

  4. (liberdade).

Público-alvo: Embora escrito para crianças, sua crítica é universal –

tanto para alunos oprimidos por decorebas quanto para adultos que 

esqueceram como sonhar.