A matéria intitulada "O Luxo e a Magia dos Velhos Cinemas" aborda a transformação arquitetônica e cultural dos cinemas no Rio de Janeiro, destacando o contraste entre a grandiosidade e o fascínio das salas de cinema do passado e a banalização desses espaços na atualidade. O texto centra-se na pesquisa realizada por João Luiz Vieira, professor de cinema e diretor, que, em parceria com a arquiteta Marguerita Campos Ferrara, investigou a arquitetura dos cinemas cariocas entre as décadas de 1920 e 1980.
: O texto descreve a experiência quase mágica de frequentar os cinemas antigos, com sua arquitetura luxuosa, lustres de cristal, tapetes macios e cortinas douradas, que transportavam o espectador para um mundo de sonhos antes mesmo do filme começar.
João Luiz Vieira ressalta o declínio drástico no número de salas de cinema no Rio de Janeiro, que passaram de quase 300 nos anos 1950 para apenas um terço desse número atualmente. Ele critica a perda da identidade arquitetônica desses espaços, que hoje se confundem com shoppings centers ou outros ambientes genéricos.
A pesquisa destaca que a arquitetura dos cinemas antigos era um elemento central de sedução, criando uma atmosfera única que preparava o espectador para a experiência cinematográfica. Essa característica se perdeu nos cinemas modernos, que priorizam o consumo rápido e despersonalizado.
A pesquisa resultou em um livro com 350 fotografias e legendas explicativas, além de exposições, como a realizada na Cinemateca do MAM. O trabalho de João Luiz Vieira é apresentado como uma espécie de arqueologia cultural, resgatando a memória e o significado desses espaços.
O texto evoca uma sensação de saudade e perda, enfatizando como a modernidade e a comercialização massificada erodiram a magia associada aos cinemas. A abordagem é subjetiva, refletindo a perspectiva pessoal de João Luiz Vieira, que vê na arquitetura dos cinemas antigos uma forma de arte e um veículo para o sonho coletivo. A matéria também sugere que a experiência cinematográfica atual, focada apenas no filme, perdeu a dimensão ritualística e simbólica que outrora a caracterizava.
Texto Integral
O LUXO E A MAGIA DOS VELHOS CINEMAS
Susane Schild
A ponta dos pés, o menino esticava o braço para pagar a entrada, os olhos não alcançavam o rosto da vendedora na bilheteria alta, bem acima do nível do chão. De entrada na mão, acompanhado da mãe ou do irmão mais velho, o menino atravessava o hall em direção à sala de espera, de paredes espelhadas, as escadarias de mármore conduzindo ao balcão, volumosos lustres de cristal pendentes do teto. A respiração contida no verdadeiro rito de passagem que transportava o espectador da realidade ao mundo do sonho, representado pela sala de projeção. O tapete macio, as cadeiras de madeira, as luzes que se apagavam gradualmente com pompa, a cortina dourada que se abria lentamente revelando a tela, emoldurada por uma arquitetura que conferia ao espaço um ar de eternidade.
João Luiz Vieira, carioca, 34 anos, criado na área da Leopoldina, nunca esquecera o impacto das primeiras vezes que foi ao cinema, a sua estreia inesquecível no Cine Itajá. Definindo-se como “um grande espectador”, transformou a paixão em material de trabalho. Professor de Cinema no Departamento de Cinema da Universidade Federal Fluminense, diretor de cineclubes, pesquisador e teórico, João Luiz sentiu-se um arqueólogo ao realizar, junto com a arquiteta Marguerita Campos Ferrara, o livro Quase Espaço do Sonho — Cinema e Arquitetura no Rio de Janeiro, primeiro trabalho do projeto Cinemateca promovido pela Embratel e dedicado à pesquisa.
Durante o período, João Luiz revirou arquivos, procurou fotos e textos — o mais importante foi reviver a experiência de percorrer as salas de cinema no Rio de Janeiro, muitas delas já desaparecidas. A sensação era de fazer uma viagem no tempo, penetrar em espaços que antes eram portais para o passado, como um arqueólogo em busca de pirâmides.
O ponto de partida de João Luiz foi selecionar os cinemas de aspectos arquitetônicos mais relevantes construídos entre 1920 e 1980, o apogeu da construção de salas de cinema no Brasil. Nos anos 1950, o Rio tinha dois milhões e meio de habitantes e quase 300 cinemas. Hoje, a população cresceu, enquanto o número de cinemas foi reduzido a um terço. O interesse de João Luiz foi justamente resgatar a arquitetura desses cinemas, que carregavam um fascínio inesquecível, marcante para quem os frequentava.
— Antigamente — lembra João Luiz —, e na verdade não faz tanto tempo assim, as pessoas iam ao cinema como um destino em si: ao Metro, ao Itajá. Hoje, as pessoas escolhem um filme.
O fascínio de João Luiz começa antes mesmo de o filme aparecer na tela. A arquitetura dos cinemas já era um exercício de sedução deliberado, um convite ao sonho. Lustres em forma de olho, tetos rebuscados, decorações suntuosas — tudo contribuía para criar uma atmosfera única.
Os cinemas Pathé, Palácio e Capitólio exibiram o mesmo filme — O Sinal da Cruz, de Cecil B. DeMille — em 1927. Dos três, apenas o primeiro sobreviveu, ainda hoje conservando seu teto ornamentado.
A arquitetura dos cinemas era uma maneira especial de colonizar o espírito do espectador, preparando-o para a experiência do sonho. Afinal, muitos cinemas brasileiros eram inspirados nos grandes cinemas americanos. O fascínio e a sedução do cinema começavam na arquitetura, que garantia o sonho antes mesmo da projeção.
Com páginas de texto e 350 fotografias com legendas explicativas, o resultado da pesquisa será publicado em breve pela Editora Polymétrica, com exposições na Cinemateca do MAM. Para João Luiz, resgatar esses espaços é resgatar parte de sua própria história — como no Cine Palácio, onde assistiu a Ben-Hur e O Rei dos Reis.
Os cinemas marcaram época, mas seu destino foi, em grande parte, a demolição ou a transformação em espaços genéricos. A arquitetura do cinema, outrora um portal para o sonho, hoje se confunde com corredores de shoppings ou saguões de bancos. Para João Luiz, a magia dos velhos cinemas permanece viva apenas na memória daqueles que, como ele, ainda se lembram do rito de passar por aquelas portas e se deixar levar pelo sonho.
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