"Ventoinha" de Coelho Netto
VENTOINHA
(Monólogo de Coelho Netto)
Cenário: Sala.
(Entra vagarosamente, sobrepondo um volume, embebido na leitura de uma
revista ilustrada. Detém-se em meio da cena. Com um momo, menenando a
cabeça em aceno negativo.)
cabeça, um Napoleão. Esta guerra está a pedir um gênio como Alexandre, César
ou Napoleão. Estava não val. E pena que eu seja ainda tão criança. Ah! Se eu
fosse homem e eles me confiassem o comando das tropas...
(Sem deixar a revista, mete a mão no bolso e tira uma touca de criança com a
qual espoia o rosto. Sentindo-lhe a aspereza das rendas.)
— Que é isto? Uma touca! Esta minha cabeça! Que hei de fazer? É de família.
Meu tio Sarajuba era tão distraído que, querendo estudar medicina, para que
tinha grande vocação e dedo, matriculou-se na Escola Politécnica e, quando
se formou, em vez de exercer a engenharia, abriu um consultório, receitando
aos doentes fórmulas algébricas e resolvendo casos de cirurgia com uma das
quatro operações.
Lembro-me ainda de lhe haver ouvido afirmar que o que havia de melhor para a
coqueluche era um xarope de raiz quadrada. Se o não tivessem recolhido ao
hospício, a medicina seria hoje um ramo das matemáticas superiores. Deram-no por doido, a ele, um sábio!
Que se há de fazer? É o destino de todos os grandes homens, os eternos incompreendidos. (Com languidez moderna.) Por exemplo. Quem há aí que me
entenda? Ninguém!
Lembro-me que, desde pequenino, de manhã, fui sempre tão distraído que
trocava a noite pelo dia, não a deixando pregar olho um segundo. Por isso fui
desmamado antes de completar oito meses. Comecei a sofrer muito cedo,
mais cedo do que meu tio. (Com fúria!)
A distração é o desprendimento do espírito: O homem distraído eleva-se do
mundo material, abandona a terra pelo espaço, despreza as mesquinharias do
plano inferior pela grandeza do ideal, como a ave remonta em vôo altivo às
nuvens. (Figueira vaidoso.) Algumas vezes, sucede-lhe cair, como se deu com
meu tio Serapito: mas se dá vai longe! (Outro tom.)
No colégio, os lentes, os bedéis, os colegas todos me tratam de “ventoinha”.
Pensam que me incomodo! (Encolhe os ombros com altivez.) Pois sim! Inveja!
Se me distraio em uma conta, na análise de um trocado, na definição de uma
regra, é contar logo com a gargalhada. Os medíocres não compreendem, nem
podem compreender os espíritos de eleição.
Aritmética, gramática, geografia, física, química… que valem tais lubrocracias?
O gênio não se prende a regras. O sol precisa de excitação ou de querosene
para alumiar? Não! Alumia porque é sol. Assim o homem de gênio: sabe porque
sabe.
Nós me procurei com gramáticas e números e João, escrevo, forço todo que
gemo. Colaboro em vários jornais e se os meus artigos não saem é por falta de
espaço. Riem de mim quando não atino, de pronto, com o sujeito da oração.
Ou um sujeito! Que eu um sujeito? Não é que eu não saiba, é que me perco,
distraio-me. Tenho fatos problemas na cabeça…
Outra para-cauda é a tal história dos pronomes. Francamente… Pois com tanta
coisa séria que há na vida de um homem, ter cabeça para cuidar de pronomes,
colocando-os à direita ou à esquerda, e vocês, lá porque a gramática assim
entenda.
Os pronomes que se arranjem, eu é que não hei de andar atrás deles, a dizer-lhes: “Cavalheiro, o seu lugar é aqui, tudo caro você…” ali como quem distribui lugares à mesa.
Eu faço com os pronomes o que papai faz com os antigos que vêm aqui jantar:
senta-se e diz-lhes: “Sem cerimónia, como em sua casa!”. E eles arranjam-se.
Depois, distraído como sou… Se não fossem as minhas distrações, eu já estaria
matriculado na Faculdade de Direito, porque o meu sonho é fazer um túnel qu
e ligue o Distrito Federal a Niterói. (Pausa. Sorriso.)
Ora, aqui está. Vêem? Um bacharel a fazer tantos… É a alma do meu tio Serapito.
Isso é que me preocupa. Se eu me pudesse dominar, firmando a atenção no que
faço… Ah! Mas qual! O meu espírito é como um passarinho que se não aquieta em um ramo e só quer voar daqui para ali, ao sol.
Abro um livro, ponho-me a estudar… De repente, as letras começam a mover-se:
crescem, põem-se a dançar, a correr, e a página transforma-se em uma tela de
cinema e, em vez de uma descrição geográfica, de uma equação ou de um
capítulo de história, vejo uma fita de animação causada. Ora, filmes, quando são
muito longas, fatigam os olhos e fazem dormir, não é verdade?
No dia seguinte, na sala, é aquela certeza: nota má. A culpa é minha? Não. De
quem é? (Espalmando a mão na fronte.) Disto! É do mundo de idéias que tenho
aqui dentro. O futuro dirá quem sou e o que valho.
(Olhando em volta.) Que vim fazer aqui? (Procura lembrar-se.) Ah! Procuro
o meu atlas, roubei-o ou deixei? No colégio, com certeza. Também para umas
terrinhas de nada, um volume daquele tamanho. (Põe-se a procurar por aí e,
abrindo um deles, descobre um catálogo. Com grande alegria.)
Os meus soldados! Foi mamãe que os escondeu aqui no dia em que levei nota
tal em geografia. (Penalizado.) Pobres prisioneiros do general. (Outro tom.)
E isto! Depois dizem que sou vadio. Eu não tinha inclinação é para a guerra.
Estudo batalhas, fico horas e horas à mesa confundindo planos e, também os
vem executar, aparece José com a toalha, guardanapos, pratos, talheres, para
pôr a mesa. Se desço à horta para fazer uma trincheira, falta-me logo em cima
Manuel: “Que não! Que tenha pepinos, que não lhe esburague os canteiros,
não lhe estrague as plantas.”
E estudar? Só querem livros na mão. Os imbecis… Cada qual para o que nasceu.
Entendem que hei de ser médico! Cortam-me as asas e querem que eu voe.
Pois sim! Soltem-me! Deixem-me liberdade! Deixem-me ir para onde me chama a vocação, para onde me leva o gênio. (Enlevado.) O gênio!
(De repente, prestando atenção.) Vem gente! E mamãe, com certeza.
(Ao público.)
Não digam que eu estive aqui a tagarelar com os senhores, senão ela não
me leva amanhã ao cinema. (Arregalando os olhos.) E vai uma fita!…
(Senta-se, abre o livro que traz debaixo do braço e põe-se a declamar com ênfase.)
"Dai-me uma fúria grande e sonorosa,E não de agreste avena ou frauta rudaMas de tuba canora e belicosaQue o peito acende, e a cor ao gesto muda."(Crepúsculo — Coelho Netto)
NOTA DO AUTOR
Preocupado com a formação dos jovens e a educação infantil, Coelho Netto
escreveu uma série de obras de cunho cívico e moral: A América, A Terra
Fluminense, Centro Fúnebre, Apólogo; Teatro Infantil, A Pátria Brasileira e Brevário
Cívico.
Preocupado com a falta de textos para as representações escolares,
escreveu pequenas cenas, monólogos e poemas para serem interpretados por
crianças, pois se revoltava ao ver “crianças reproduzindo as chalaças
regamboladas que tanto depravam os nossos teatros”. Esses textos foram
reunidos num volume — Teatrinho, de onde tiramos o monólogo seguinte.
(Fim do monólogo.)
Análise do Monólogo "Ventoinha" de Coelho Netto
1. Contexto e Objetivo
Gênero: Monólogo teatral infantil, parte da obra Teatrinho (1910),
que reúne peças para representações escolares.
Propósito: Criticar o ensino tradicional rígido e celebrar a imaginação
infantil, além de satirizar a pretensão intelectual.
Tema Central: O conflito entre a criatividade livre da criança e as
expectativas sociais/acadêmicas.
2. Personagem (Carlos)
Idade: 12 anos, mas com maneiras afetadas e discurso pretensioso.
Características:
Distraído: Herdou a excentricidade do tio Serapito (que confundia
medicina com matemática).
Sonhador: Planeja "um túnel entre o Distrito Federal e Niterói" e
transforma livros em filmes.
Rebelde: Rejeita gramática ("pronomes que se arrangem") e a
carreira médica imposta pela família.
Narcisista: Acredita ser um "gênio incompreendido" (como
Napoleão ou seu tio).
3. Estrutura e Linguagem
Tom: Alterna entre cômico (ex.: receitar "raiz quadrada" para coqueluche) e lírico (ex.: comparação do espírito com um pássaro).
Recursos Estilísticos:
Ironia: "A medicina seria hoje um ramo das matemáticas"
(critica a racionalidade excessiva).
Metáforas: Letras que viram cinema, espírito como passarinho.
Intertextualidade: Citação de versos de Crepúsculo (do próprio autor).
Ritmo: Frases curtas e exclamativas (agitadas) contrastam com
devaneios poéticos (fluidos).
4. Crítica Social
Educação:
Escolas reprimem a curiosidade ("cortam minhas asas").
Professores ridicularizam Carlos por erros gramaticais, não
valorizando seu pensamento criativo.
Família:
Pais impõem carreiras práticas (medicina), ignorando seus sonhos.
A mãe esconde seus soldados de brinquedo (símbolo da
repressão à imaginação).
5. Simbolismos
Ventoinha (título): Metáfora para a mente inquieta de Carlos, que gira
sem controle.
Soldados de chumbo: Representam a infância aprisionada pelas regras
adultas.
Cinema: A realidade é mais atraente quando transformada pela fantasia.
6. Influências e Originalidade
Tradição: Dialogia com o romantismo (genialidade vs. mediocridade) e o modernismo (fluxo de consciência, linguagem coloquial).
Inovação: Um dos primeiros textos brasileiros a colocar uma
criança como narrador crítico do mundo adulto.
7. Atualidade
Educação: Discussão sobre ensino padronizado vs. criatividade
ainda relevante.
Infância: A peça antecipa debates sobre autonomia infantil e TDAH
(embora sem diagnóstico, Carlos exemplifica a mente dispersa).
Conclusão
"Ventoinha" é uma sátira engajada e poética que:
Denuncia a rigidez educacional;
Celebra a infância como espaço de invenção;
Questiona o que é "loucura" (genialidade) ou "vagabundagem"
(liberdade).
Público-alvo: Embora escrito para crianças, sua crítica é universal –
tanto para alunos oprimidos por decorebas quanto para adultos que
esqueceram como sonhar.

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