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segunda-feira, maio 23, 2016

Jack Kerouac

Título original: ]Nova onda devolve Jack Kerouac para a estrada
Data: 08/Ago/98
Autor: Amir Labaki
Editoria: Ilustrada

Líder da geração 'beat' ganha revival na América, com recente biografia e disputa de direitos para levar sua obra ao cinema; no Brasil, sai 'O Livro dos Sonhos', enquanto o famoso 'On the Road' é relançado

AMIR LABAKI
de Nova York
Jack Kerouac, o líder da geração "beat" (1922-1969), finalmente dá a volta por cima. Uma nova onda Kerouac cresce nos EUA, espelhada pela multiplicação das vendas, guerras por direitos e novas publicações. No Brasil, duas edições recentes devolvem Kerouac às livrarias -timidamente, pois ainda há muito a traduzir.
A L&PM acaba de lançar a tradução de Milton Persson para "O Livro dos Sonhos", uma curiosa obra menor de Kerouac.
Já a Ediouro torna mais uma vez acessível a eficiente e coloquial versão que Eduardo Bueno lançou pela Brasiliense nos anos 80 para "On the Road", rebatizado aqui como "Pé na Estrada". O volume volta enriquecido por uma bela e sintética introdução do tradutor, que frisa a subestimada influência de Kerouac na cultura pop americana do último quarto de século.

O mito Kerouac, como uma espécie de Marlon Brando das letras, curiosamente estigmatizou Jack, em detrimento do justo exame de sua obra como escritor. O estrondoso sucesso de "Pé na Estrada" encarcerou-o no estereótipo de autor de narrativas autobiográficas aventureiras.
Os 17 livros seguintes que publicou em vida foram sempre repudiadas pela rasteira comparação com a obra que o celebrizou.
Kerouac bebeu até morrer para escapar do estigma de autor de um livro só. Escrito em 1951, ao ser lançado em 1957 "Pé na Estrada" já estava anos-luz das pretensões literárias de Kerouac. À cobrança de "On the Road 2", ele sucessivamente respondeu com livros cada vez mais fragmentários e experimentais -ainda que sempre assumidamente autobiográficos.

O jovem admirador de Thomas Wolfe, referência maior de sua estréia com o convencional "The Town and the City", preferiu seguir as pegadas do Joyce de "Finnegans Wake", abraçando a "prosa espontânea" como uma variação do "fluxo de consciência" do autor de "Ulisses".
Kerouac não pretendia pouco. Além de Joyce, Proust. "Minha obra representa um vasto livro como o de Proust, com a diferença que minhas lembranças foram escritas no calor da hora ao invés de mais tarde, numa cama de doente", escreveu. "O conjunto forma uma enorme comédia, vista pelos olhos do pobre Ti Jean (eu), também conhecido por Jack Duluoz, o mundo de ação furiosa e (...) de gentil doçura, visto por meio do buraco de fechadura de seu olho."


Sua "Lenda de Duluoz" seria assim um equivalente no "século americano" para a saga memorialística proustiana "Em Busca do Tempo Perdido", contada num frenesi verborrágico joyciano cadenciado pelo ritmo do jazz de Charles Parker e Dizzie Gillespie.
Atirando tão alto, não surpreende que Kerouac tenha errado tanto. Daí a subestimá-lo, porém, há um mundo -basta ler "Visions of Cody", sua segunda versão, "sem inibições literárias", para "Pé na Estrada".
Mas foi o que aconteceu. A recepção crítica de seus livros pós-"Pé na Estrada" foi negativa. Seus contemporâneos de escrita fora da turma "beat" tampouco o pouparam. Truman Capote o definiu como "datilógrafo".
O tempo passou, a poeria assentou e os anos 90 chegaram para a reavaliação do legado de Kerouac, principalmente a partir da edição de sua correspondência em 1995. Ellis Amburn a sintetiza ao fim de seu minucioso e revelador "Subterranean Kerouac - The Hidden Life of Jack Kerouac", livro que acaba de chegar às livrarias
Duas outras biografias estão sendo escritas. Francis Ford Coppola, Gus Van Sant e Johnny Depp acalentam o velho projeto de uma versão filmada para "Pé na Estrada". As vendas do livro quadruplicaram desde 91 e atingiram três milhões de cópias. O valor do espólio Kerouac, incluindo ainda vários inéditos, atingiu a marca de US$ 10 milhões e é disputado na Justiça pelos herdeiros de sua filha contra os de sua última mulher.
Não é ainda o paraíso almejado pelo místico Kerouac, mas do purgatório ele já escapou.

Biografia devassa bissexualidade do escritor

"Subterranean Kerouac" (St. Martin's Press, 436 págs, US$ 27.95) não é a primeira biografia do escritor, mas ninguém foi tão longe quanto Ellis Amburn no retrato da complexidade essencial a Jack Kerouac.
Biógrafo de Janis Joplin e Buddy Holly, Amburn foi o responsável pela edição de dois dos últimos romances de Kerouac ainda em vida, "Desolation Angels" e "Vanity of Duluoz".
Sua amizade com o autor desenvolveu-se fundamentalmente por carta e telefone.
Amburn trabalhou com Kerouac no fim da linha -bêbado a maior parte do tempo, isolado com a mãe doente e a mulher devota, reacionário a ponto de renegar a ligação com os "beat", votar em Richard Nixon e defender a Guerra do Vietnã.
O Kerouac de Amburn é um homem essencialmente contraditório. A ênfase maior concentra-se na vida sexual do escritor. Kerouac, que se gabava de ter transado com mais de 300 mulheres, jamais assumiu sua bissexualidade.
Ninguém teria nada com isso, caso ele não a tivesse meticulosamente omitido de seus "romances de histórias reais".
"Nenhum medo ou vergonha na dignidade de sua experiência, linguagem e conhecimento", professava Kerouac em seu "Credo e Técnica para Prosa Moderna". Amburn mostra que não foi bem assim.
Paixões masculinas
As experiências homoeróticas de Kerouac teriam se iniciado com um "trauma" de infância numa visita inesperada do irmão Gerard.
A seguir, Kerouac teria tido duas grandes paixões masculinas, na juventude, por Sammy Sampas -irmão de Stella, que se tornaria sua terceira esposa- e, já adulto, por Neal Cassidy, o personagem central de praticamente toda a sua obra.
"A maior parte das biografias diz que a fama o matou", afirma Amburn. "Foi o álcool que o matou, pois ele não podia aceitar sua sexualidade." Amburn organiza e amplia relatos anteriores de relações homossexuais de Kerouac, como o de Gore Vidal em suas memórias, "Palimpsesto", ou os colhidos por Barry Gifford e Lawrence Lee no polifônico "Jack's Book: An Oral Biography of Jack Kerouac" (St. Martin's Press, 1994, US$ 13.95).
"Subterranean Kerouac" não é uma exploração barata. Ellis Amburn reconstitui passo a passo a trajetória do sempre atormentado Jack Kerouac e analisa com competência os altos e baixos de sua obra.
Revela um dionisíaco marcado pela culpa cristã, um budista tardio assumidamente egocêntrico, um homem do mundo que passou a maior parte da vida morando com a mãe em subúrbios.
É impossível ler a obra de Amburn e não lembrar o verso de Caetano: "De perto, ninguém é normal".
(AL)

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