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sábado, outubro 10, 2009

De pessoas e guarda-chuvas



Camilo Mota*

Na década de 1950, Rubem Braga se admirava da imutabilidade do guarda-chuva através dos tempos. O objeto simples, funcional, negro, continua firme em sua trajetória século vinte e um adentro. Acho que foi essa frente fria, essa chuva ora miúda ora grave a dizer lá fora que a vida é tão vasta e dinâmica, que me fez notar essa nostalgia das coisas que não mudam. A chuva, a bem dizer, deixa as pessoas monótonas e caseiras. Até minha cadela passa o dia suspirando, não agüentando ver mais tanta água que desce do céu. A música da chuva também não mudou. Varia de tom, mas permanece fiel a seu escudeiro, nosso protetor que até em dias de vento forte ainda nos livra pelo menos a cabeça de se molhar...

“Tira essa roupa molhada, menino. Vai resfriar”. Dizia a mãe com uma sabedoria que não sei se existe mais. Certeiro era tomar em seguida um banho quente. Agasalhar-se e quem sabe tomar uma sopinha de fubá com alho, um chazinho... O guarda-chuva fica lá fora, como a vigiar as águas. Só entra em casa depois, seco, quando não mais precisamos dele, e em sua vida de sombras se esconde de nós até o próximo temporal ou garoa. Deve ser por isso que ele não muda. Está livre de nossos desafios tecnológicos que não nos permitem fixar os olhos no instante congelado de uma flor desabrochando à beira do caminho cercado de asfalto, automóveis e gente, muita gente, dependendo de onde se ande, de onde se more. Aparelhos celulares, computadores, automóveis... chips cada vez mais minúsculos... cartões de memória, telas de LCD... Cada coisa que vem e que passa e que num instante nem existe mais. Mas a chuva, a flor, o guarda-chuva, esses permanecem firmes a nos lembrar que habitamos a terra que tudo nos dá e que tudo nos tira.

A nostalgia sempre vem nos tirar do sério e dizer que o tempo passa, mas que algumas coisas permanecem conosco, como tatuagens vivas. Como as músicas que minha mãe me ensinava quando criança. “Se esta rua, se esta rua fosse minha...”. Acho que foi meu primeiro encontro com a poesia. “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou, e o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”... o verso de repente ecoa numa canção entoada por Dani Lasalvia, gravado num CD de 2007, assim tão perto de mim, de meu tempo de hoje. Ainda tem gente cantando isso, meu Deus! Há mães ainda cantando assim, semeando poesia no caminho de seus filhos? Certamente, sim, pois os guarda-chuvas, que são apenas guarda-chuvas, conseguem resistir, que dirá então desses espíritos dos sons que são a raiz de nossas artes!

O cheiro do bolinho de chuva misturado com açúcar e canela. A meia e o chinelo de dedo. A camisa fugindo por debaixo do casaco. Adeus, vaidades. Está chovendo, enfim. É dia de ficar em casa, escrever uma crônica, beber um leite com chocolate quente ao lado da mulher, assistir a um filme, comer pipoca, dizer que se ama, que a natureza é generosa, que temos saudade do sol e que somos imutáveis em nossa essência de seres humanos, ovos luminosos como dizia Castaneda num livro que deve ter sido lido também num dia chuvoso...

*Camilo Mota é natural de São João Nepomuceno-MG (1965), reside em Saquarema-RJ, onde edita o Jornal Poiésis – Literatura, Pensamento & Arte (www.jornalpoiesis.com). É membro titular da Academia Brasileira de Poesia – Casa de Raul de Leoni (www.rauldeleoni.org). E é amigo do Bar do Bulga

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