Acabo de receber pelos Correios o jornal Poiesis editado pelo amigo mineiro Camilo Mota (leia a edição on line AQUI
Um dos artigos que mais me chamou a atenção é o assinado pelo Rubens da Cunha, "Pérolas do Preconceito". Fala daqueles e-mails que recebemos sobre "pérolas do Enem" ou "Pérolas do vestibular" e que o Jô Soares adora abrir o seu programa para deleite da classe média paulistana. Eis o texto na íntegra.
Crônica
Pérolas do preconceito
Rubens da Cunha, escritor
rubensdacunha@hotmail.com
O humor é uma arte de resistência. Muitos defendem que o humor não pode ter limites. Pessoalmente, sou bastante libertário neste assunto, acho que o humor pode muito, mas não pode tudo.
Recebi alguns e-mails com o título de “Pérolas do Enem”. O Enem é o Exame Nacional do Ensino Médio, uma prova que o Ministério da Educação aplica para diagnosticar a educação brasileira. Algumas incorreções, sobretudo gramaticais, viram peças de humor, não apenas de internautas, mas de gente como Jô Soares, que já abriu o programa diversas vezes com as “pérolas” dos alunos.
Não consigo rir. Acredito que, nesse assunto, o humor atravessou a fronteira do bom senso. Para mim, o humor só é válido quando a “vítima” ri de si, ou, mesmo que não goste, sabe exatamente por que estão escrachando seu comportamento. Acho difícil que alguém que tenha escrito “O serumano no mesmo tempo que constrói também destrói, pois nos temos que nos unir para realizarmos parcerias” consiga rir de suas inadequações, tanto gramaticais quanto de coerência.
É neste ponto que o humor deixa de ser uma peça de resistência e passa a ser instrumento da opressão. Meia dúzia de pretensos donos da língua pegam frases descontextualizadas e humilham aqueles que não têm domínio sobre a norma culta. Humilhação pura e simples. Afinal, os estudantes que prestaram o exame não são celebridades fajutas, nem políticos fanfarrões nem novos-ricos ridículos. São pessoas que, de uma forma ou outra, estão se expressando como podem, e se escrevem “errado” (bem entre aspas, mesmo) é muito mais por culpa de um sistema educacional excludente e indiferente do que por falta de interesse ou coisa que o valha.
Rir da ignorância gramatical alheia é reforçar ainda mais o abismo social que separa as classes sociais deste País, é reforçar toda uma estrutura político, social, ideológica que permanece no poder. A cada gargalhada que a platéia do Jô Soares dá quando ele repete as frases do Enem; a cada e-mail transmitido com as “pérolas” e com os comentários infames dos “sabedores da língua” (bem entre aspas, mesmo), aumenta mais a exclusão e, principalmente, diminui a força do humor como arte, pois ele passa a servir para uma minoria se divertir, quando a maioria segue seu próprio rumo, virando-se num analfabetismo funcional, que tem lá o seu próprio humor.
Normalmente, quem usa o “não-saber” do outro para rir e sentir-se superior tem a certeza de que a sua inteligência nunca vai ser questionada. Pura balela. Na mesma proporção que alguém tece um comentário torpe sobre a ignorância alheia, pode receber de volta um comentário torpe sobre a própria ignorância. O humor é uma estrada perigosa. Num dia você atropela, no outro é atropelado. Rir daquilo que o outro não sabe é fácil. Quero ver é rir daquilo que você mesmo não sabe, rir da própria ignorância. E isso, os que organizam e repassam as “peroras do Enem”, parecem não conseguir.
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