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sábado, novembro 17, 2007

NOITES DE SOL

Tenho o costume de acordar de madrugada. É hora de beber água, olhar para um possível vagabundo que passa na rua e juntos comungar a solidão quieta e perigosa. Mas não nessa noite. Dessa vez eu vou me vestir, pegar as chaves e apertar o botão do elevador. O elevador dorme. Desço pelas escadas e ao encarar o porteiro quase pergunto o motivo do elevador parado, mas a minha necessidade de rasgar a noite é muito mais intensa do que qualquer questionamento ordinário.
Passeio pelas ruas da cidade. Do alto, tudo é mais bonito. Até os postes. Eu deveria estar acompanhado. Não. Ninguém entenderia um homem que sai a fim de olhar a urbana madrugada. Melancolia não se divide.
Longe, um trem com a possível primeira leva de operários. Eles têm compromissos e isso me faz sentir mal. Sou um homem sem compromissos, sem carteira assinada, sem certidão de casamento. O que eu tenho é o seguro do carro que terei que renovar no próximo mês. Talvez o meu carro seja a minha maior segurança. Morro de medo de perder suas chaves...
Terremoto no Chile, Botafogo perdeu mais uma, outra bomba no Iraque. Isso tudo acontece quando olho para a cidade. Um pouco mais de paciência. Desligo o rádio.
Queria ouvir barulho de muitos grilos igual aos dos filmes americanos. Por enquanto, só ouço o som da lua. Astro que ilumina esse pobre mortal, que ilumina o assassino em seu bote e o padeiro em seu ritual. Rimas.
Acho que já tenho a idade de ver um disco voador. Olho pro céu na esperança de que um ser de outro planeta tenha tido a mesma idéia de passear pela madrugada. Seria uma companhia interessante. Difícil será encontrar um bar aberto para beber uma cerveja. Além disso, estou sem dinheiro. Eu já disse: só tenho o seguro do carro.
Olho para o relógio. Já é hora de trocar essa pulseira. Se ela arrebentar, o transformo em relógio de bolso. Ou então darei para o possível vagabundo que comigo comunga a solidão quieta e perigosa.
Está amanhecendo e isso não faz me sentir muito bem. Tenho que sair daqui. Talvez eu seja um vampiro ou uma dessas criaturas que bebem água de madrugada. Espero ter gasolina suficiente para voltar antes desse sol tão difícil.
Estou de volta à portaria e só depois me dou contar que o elevador fora consertado. Cadê o porteiro?
Na cozinha as torradas estão prontas para saltitar e o liquidificador já está indicando a vitamina. Está na hora de acordar para mais um dia sem disco voador, sem vampiro, sem assassino, sem padeiro, sem grilos e sem paciência.

(Marcelo Bulgarelli, Primavera de 2007)


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