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sexta-feira, junho 10, 2011

A Cidade e as Serras


Eça de Queirós

(...)
"Jacinto ocupou a sede ancestral – e, durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de
estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma
colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: – "Está bom!"
Estava precioso; tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
– Também lá volto! exclamava Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e
pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus
olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
– Ótimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
– Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado:
– Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma
velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos."
(...)

QUEIROZ, Eça. A Cidade e as Serras. Portugal, Lello e Irmãos Editores, s/d, pág. 465

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