Deitados nos catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó da sua tristeza. Discretamente, como se houvesse perigo de que os outros pudessem ver o mísero espectáculo, a mulher do médico tinha ajudado o marido a assear-se o melhor possível. Agora havia um silêncio dorido, de hospital, quando os doentes dormem, e sofrem dormindo. Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora. Num gesto cansado, levou as mãos à cara para afastar o cabelo, e pensou, Vamos todos cheirar mal. Nesse momento principiaram-se a ouvir uns suspiros, uns queixumes, uns gritinhos primeiro abafados, sons que pareciam palavras, que deveriam sê-lo, mas cujo significado se perdia no crescendo que as ia transformando em grito, em ronco, por fim em estertor. Alguém protestou lá no fundo, Porcos, são como os porcos. Não eram porcos, só um homem cego e uma mulher cega que provavelmente nunca saberiam um do outro mais do que isto." Extraído de "Ensaio sobre a Cegueira
Não foi Raimundo Silva quem conduziu Maria Sara à cama, nem ela para ali o impeliu suavemente como distraída, ali se acharam, sentados primeiro na borda do colchão, amarrotando a colcha branca, depois ele deitou-a para trás e continuaram a beijar-se, ela rodeava-lhe a nuca com os braços, o braço direito dele servia de apoio à cabeça dela, mas o esquerdo parecia hesitar, sem saber o que fazer, ou sabendo-o e não ousando, como se um final e invisível muro se houvesse interposto no último segundo, guiou-o finalmente a sábia mão, tocou a cintura de Maria Sara, desceu até à anca e foi pousar, quase sem pressão, no arredondado da coxa, para subir depois, devagar, pelo corpo acima, até ao peito, agora a memória dos dedos pôde reconhecer a macieza do tecido da blusa em que tocava pela primeira vez, a sensação foi rapidíssima e no mesmo instante diluída pela consciência tumultuosa de que sob a mão banal do homem estava o prodígio de um seio." Extraído de "História do Cerco de Lisboa", de José Saramago
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