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sábado, abril 26, 2025

O Bom e o Mau Fã -


VINICIUS DE MORAES



Ser bom fã não é só gostar de ir ao cinema. (Cf.: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.) É preciso também saber ir ao cinema. O sujeito, por exemplo, que senta muito longe da tela bem para mim o estigma de mau fã. A dignidade é sentar nas dez primeiras filas, variando a distância conforme o cinema a que se vai. No Metro, a boa fila é a quinta. Distância justa, a imagem tem no foco visual; perfeita. Já no Sol Luis gosto mais da terceira. São coisas. Agora: da décima fila para trás é positivamente indigno. Esses sujeitos então – a não ser em casos de força maior – que semiam lá nas cadeiras do fundo, me dão sempre uma impressão suspeita de que vieram ali para fazer quinta-coluna.

Há, desses, uns fabulosos. Primeiro, se instalam para acomodar a vista. Pouco a pouco vão saltando, tal salmoes, ao saber das tentativas escusas junto às nereidades inglesas, até as filas da frente. Aboleiram-se por várias vezes to lado de inúmeras senhoras.

Agora, o grande traço do mau fã é falar ao cinema. O indivíduo, ou indivíduo, que fala durante o polego, morre a força. E os há de varriga-las espécies. Há os que lêem alto os letreiros, e esses são a peste. Há os sonambólicos, que murmuram contra o vilão, torcem pelo "mocinho", avisam o hotel do perigo que o espreita, engrolam pequenas frases a propósito de determinadas atitudes da heroína. São fãs idióticos, menos decares, às vezes até gozados.

No entanto, dentro do tipo em epígrafe, o mais irritante é o que chuchota histórias que não têm a ver com o que se está passando ali. É uma especialidade de mulheres, que vão com suas amigas ao cinema, para fazer hora. "Porque dona fulanina disse, patatá-patatá, mé-mê-mê, au-au-au, ela está com um vestido, minha filha, um amor!" Já agente vira a cabeça para trás, olha a faladeira, pensa mal dela, pigarreta e volta à posição normal. O encarejo se smorza, mas é por pouco tempo. Mulher tem uma facilidade fabulosa para passar por cima dessas coisas. É um animal de repetição. Se possui o mau hóbulo de não ter o dinheiro pronto na hora de saltar do ônibus, repeti-lo-á pelo resto da existência. É inútil. Trinta e duas pessoas com presas que esperem.

Outro mau fã de grande vulto é o que senta nas cadeiras da esquerda ou da direcificando de três quartos para a tela. São sujeitos que têm vocação para tabela. O chupador de caramelos é outro. É ichoc, ichoc, ichoc no ouvido da gente, como se estivesse andando na lama ou coisa para recida. O fã cuidando-o para desembruchar balas também é um errado. O barulho do papel de

senbrulhado devagar é muito mais irritante que o de desembrulhar rapidamente e acabou-se a questão.

E os casais enamorados, que desgraça!

"Você gosta de mim?"

"Gosto!"

"Mas gosta mesmo?"

"Mesmo!"

"Muito?"

"Muito!"

"Mês jura?"

"Juro, juro e juro, pronto, tá satisfeito?"

Depois, dois suspiros fundos como os cariocas no último jogo com os paulistas (eu sou carioca, vejam lá), e a reconheça: "Mas você gosta mesmo?... Ele...".

A fauna é grande. Poderia citar muitos outros casos. Mas percebi, de repente, que nada disso tem a menor importância diante da lua que está no céu. Procurad pagar a lua, ficar quieto vendo a lua. Sou um bom fã de cinema, mas muito maior da lua. Hoje ela está cheia e ausente, imparticipante. Me perderei de tudo, olhando a lua.

Vinicius de Moraes, "O cinema de meus olhos", Companhia das Letras – 1991. Artigo escrito em 1943.

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