ACORDEI com um barulho no mundo. Um barulho atrodor, de foguetes a se sucederem, que me deu, de súbito, a impressão de que alguma coisa se desmoronava. Que horas seriam? Atravessando as frestas da veneziana, a luz do dia me cegava. Fôra, na véspera, a uma festa junina na Floresta da Tijuca, chegara em casa às cinco da manhã, aos trancos. E aquele despertar, entre explosões me desorientava.
Foi quando me veio, de longe, o som vibrante do Hino Nacional. “E’ o jôgo! E’ o jôgo!” — lembrei-me, concatenando idéias, despertado completamente. E’ o jôgo, e nós ganhamos!” — conclui, emocionado, diante daquele clamor. NÓS SOMOS CAMPEÕES DO MUNDO! Então, foi o sofrimento: eu perdera a irradiação da partida vitoriosa — e era como se tivesse perdido, irremediavelmente, hora e meia de vida.
Desolado, estendi o braço para o rádio a um metro da cama, liguei-o, passei os ponteiros no mostrador. O jôgo apenas se iniciava. E, de repente, a angústia de ter perdido a irradiação, foi substituída por uma outra, muito pior: não tínhamos vencido, eu devia enfrentar ainda noventa minutos. Agora, preferia ter perdido a irradiação, mas estar diante de uma vitória garantida... E me lembrei daquele dia trágico de oito anos atrás, o silêncio que descera sobre a cidade em 1950, um silêncio doloroso... Tudo ia recomeçar...
A ressaca voltou, abandonei-me à cama, destruído. Acompanhar tal partida representava, para mim, doloroso patriotismo. Bebia as palavras do locutor, o coração aos solavancos, mas me dispunha a mergulhar covardemente no sono se a irradiação fosse ingrata.
Vieram os minutos preliminares, acompanhados num longe. Sibito, um grito de gol, ao qual se sucedeu um silêncio de morte. Era o gol sueco. Ah, 50!... E me imobilizei sob as cobertas, infeliz. Não queria mais ouvir.
Adormeci? Sei que fui surpreendido com novo grito, esganiçado e longo, interrompido por uma salva frenética: um troar de foguetes, que abafa as palavras do locutor. Era o segundo gol — o do empate, que me reconfortou.
E’ preciso contar o resto? Cada brasileiro, naquela manhã, a princípio terrível, depois gloriosa de domingo, sofreu como eu. Os gols que se sucederam me levaram definitivamente à ressaca. Mas não me tranquilizaram. Cheguei a desejar um avanço no tempo — chegar logo ao fim da partida, qualquer que êle fôsse. O horrível era aquele martírio lento, martírio chinês.
Termina a primeira etapa no 2x1, aumenta a nossa vantagem no segundo tempo. Mas aqueles triunfos não me apaziguam — nem tão pouco ao locutor — única vida, além da minha, no pequeno apartamento. Babe-se lá! — os suecos lutam, desesperados, por um empate, e faltam ainda trinta minutos para terminar a partida... Ah, Pelé! Ah, Vavá! Deus nos ajude...
— Estamos atravessando os vinte minutos mais lentos da história do futebol brasileiro — murmura o locutor, ansiado.
Somos, eu e êle, duas almas irmanadas no mesmo desespero. Malditos minutos que não passam nunca. Vou ao banheiro, faço a toilette, querendo me enganar. Daí a pouco, novo uivo, seguido do ribombar reconfortante. Venho do banheiro, a correr. O gol, seguido do tiroteio, sai do peito do speaker num grito feroz.
Agora, faltam apenas cinco minutos — o placard é 4x2 — os suecos poderão fazer apenas um gol. Dois — é impossível. Enquanto faço a barba, diante do espelho, invade-me aquela certeza.
— Faltam três minutos para o Brasil ser campeão do Mundo — grita, lá da sala, o locutor, e eu sinto um nó na garganta. E’ apenas questão de segundos — não podemos mais perder, não há tempo. E, de repente, o jogo acaba — justamente com um gol no seu fecho e um talho no meu rosto — e NÓS SOMOS CAMPEÕES DO MUNDO. Diante do espelho, eu vejo caírem minhas próprias lágrimas.
Tenho um aperto na garganta. Mas me sinto um tanto sem graça, ali sózinho no apartamento, de pijama e dorso nu, sem ninguém a quem comunicar a minha felicidade. Os livros enfileirados na estante me parecem absurdos, é ridículo o jornal jogado por baixo da porta, com seus conscienciosos prognósticos sobre uma partida futura...
Só o rádio é presente, e aquela vitória que toma posse da rua, da cidade, do mundo.
Entendo patriotismo — patriotismo é vitória do futebol no estrangeiro. Pátria é êsse orgulho que me enche o peito, e me engrandece, dá-me vários metros de altura. De súbito, o Brasil é a mais soberana das nações, e as grandes potências de dez minutos atrás de repente se amesquinham e olham para nós lá de baixo, respeitosamente. Heróis são Bellini e Pelé — pelo menos hoje.
Visto-me, abro a porta. No corredor estreito, a cena é impressionante: seis ou sete senhoras de meia idade, em quimono e chinelos, vêm do elevador a cantar, num cordão carnavalesco:
— A Taça do Mundo é nossa,
Com brasileiro, não há quem possa...
Desço o elevador, e recebo, na porta, uma chuva de confete. No saguão em alvoroço, uma senhora do quarto andar que conheço apenas de vista, põe, subitamente, algo diante de mim. Recuo surpreendido, e olho o que ela me oferece. E’ uma bala de chupar:
— Para ficar com a boca mais doce...
Choro, como um cretino.
RENARD PEREZ
REVISTA DA SEMANA
12 JULHO 1958
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