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segunda-feira, fevereiro 09, 2009

BOTAFOGUENSE



por Nelson Rodrigues - crônica, de 1956

Todos os torcedores de futebol se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Têm o mesmo comportamento e xingam, com a mesma exuberância e os mesmos nomes feios, o juiz, os bandeirinhas, os adversários e os jogadores do próprio time. Há, porém, um torcedor, entre tantos, entre todos, que não se parece com ninguém e que apresenta uma forte, crespa e irresistível personalidade. Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê?


Pelo seguinte: - há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto eu: - por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os 90 minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 a 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação.


Pois bem: - o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera precisamente a derrota.Os outros comparecem na esperança de saborear como um chicabom o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: - ele compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. Eis a verdade: - ele não vai a campo ver futebol.


O futebol é um detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo, desgrenhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir contra Zezé Moreira. No dia em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino.


Tudo na vida é uma questão de hábito. E o cidadão que padece todos os dias acaba se afeiçoando ao próprio martírio ou mais do que isso: - o martírio torna-se insubstituível como um vício funesto. É o caso da torcida alvinegra que, desde 1910, sofre e, ao mesmo tempo, xinga Zezé Moreira. Conclusão: - já não pode viver sem uma coisa e outra.


Por exemplo: - o clássico de ontem, no Maracanã, foi o que se chama de jogo ideal para o torcedor do Botafogo. Já durante a semana, ele vivera mergulhado no pessimismo como um peixinho no seu aquário. E, ontem, finalmente chegou o grande dia: - a torcida alvinegra sofreu como nunca e rugiu, como nunca, contra Zezé Moreira. De fato, o Vasco exerceu um feroz, um maciço domínio de 80 minutos.


E mais: - o Vasco deu show, jogou bonito, brilhou escandalosamente como um Sol. No intervalo do primeiro para o segundo tempo, encontro um amigo botafoguense. Exultante com o próprio sofrimento e com o próprio furor, ele veio, para mim, de braços abertos. Do lábio, pendia-lhe a saliva pesada e elástica de uma cólera sagrada. Agarra-me e rosna-me, ao ouvido: - Esse Zezé Moreira é um tarado! E repetia, atirando patadas ao chão: - Tarado.


A princípio, pensei num crime sexual ainda impune, praticado nalgum terreno baldio. Pálido, quero saber por que tarado. Então, o amigo explica-me: - porque pusera o Bauer no lugar de Pampolini! E essa substituição parecia, ao meu conhecido, o sintoma inconfundível de uma tara tenebrosa. O diabo é que todo o esforço e todo o brilho do Vasco não renderam mais que um franciscano empate de 0 a 0. Acresce que, nos 10 minutos finais, o Alvinegro reage dramaticamente e quase ganha o jogo.

(Nelson Rodrigues, crônica publicada após um jogo de 1956 entre Botafogo x Vasco)

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