Neste mês de Agosto o Brasil tem estado a celebrar o centenário de Nelson Rodrigues, cronista lendário, maior dramaturgo brasileiro de sempre. Uma sua frase lapidar era “Toda unanimidade é burra.” E enquanto vivo Nelson Rodrigues foi tudo menos unânime, sobretudo por razões políticas: apoiou, de forma pública, a ditadura brasileira.
O filho Nelsinho estava do outro lado: na luta armada contra o regime militar. Foi torturado e esteve preso durante quase oito anos. Mas pai e filho nunca se afastaram, basta ouvir Nelsinho falar sobre Nelson. É o que ele mais tem feito: falar do pai. Esta conversa deve ser a centésima dos últimos dias, e nem por isso ele se empenha menos. O filho de Nelson Rodrigues é um cavalheiro.
Impossível confundi-lo. Em todo o Rio de Janeiro não haverá barbas tão vastas. Barbas e cabelos de Matusalém. Cá está, pontualíssimo, à mesa do Sindicato do Chopp, uma esplanada no Leme, junto à casa onde o pai viveu e o filho ainda vive. Nelsinho cumprimenta, galanteia, envolve o empregado numa conversa de futebol (“Rapaz! Não vi o Fluminense!), conta que foi colega de cela de Alípio de Freitas (padre transmontano que se fez revolucionário no Brasil), pergunta de chofre à repórter: “Você conhece o velho?” Chama sempre velho ao pai. Insiste: “Conhece a obra dele?” A repórter diz que até o ler foi adiando, talvez por ter com ele uma questão política. Nelsinho responde: “Você e a torcida do Flamengo.” Ou seja, muita gente.
Então, como pode o filho de um apoiante da ditadura pegar em armas, pagar isso com duras penas e não o cobrar ao pai? Como pode esse pai ser um apoiante da ditadura, por quanto tempo, com que limites? As respostas começam em 1964 — o ano em que os militares tomaram o poder, Nelsinho entrou para a faculdade e o pai, pela primeira vez, não viveu com ele — mas rapidamente voltam atrás, como nas peças de Nelson Rodrigues.
“Meu pai casou com minha mãe em 1940 e até 1963 vivi com ele na Vila Isabel [bairro da Zona Norte carioca]. Na véspera do golpe, mudou-se.” Para viver com outra mulher. Como ficaram as relações pai-filho? “Óptimas. Ele morava em Ipanema [com a nova mulher] e trabalhava no Centro. Não havia túnel [através dos morros], era uma viagem. Então ele pedia-me carona, dizia que eu tinha vocação de caronista.” Durante a viagem debatiam tudo. “Eram caronas ideológicas, às nove, dez da noite, quando ele saía da redacção. A crónica dele era a última matéria a rodar. E ele escrevia quatro, cinco por dia, porque também escrevia para São Paulo, etc. Crónicas sensacionais. O velho nasceu para escrever. E minha mãe segurou a barra dele.”
Elza Rodrigues. “Ela o conheceu tuberculoso, candidato a morrer. Casou com o velho, escondida da mãe, no civil a 29 de Abril. Voltou para casa e a 17 de Maio casou no religioso.” Pelo meio, a mãe dela descobriu e teve um ataque. “Minha avó era italiana da Calabria, barra pesada. Detestava o meu pai porque detestava o pai do meu pai, porque ele bebia como o marido dela.” Os noivos se comunicaram por bilhetinhos até um deles cair nas mãos da calabresa. “Minha mãe levou logo um tampão na cara e minha avó começou a dar cabeçadas na parede, teve de ser segura.” Mas “o velho era uma doce figura”, resume Nelsinho. “Ele se dizia uma cambaxirra, que é um passarinho pequenino. A minha avó passou a gostar muito dele. Aliás, não conheci ninguém que o tenha conhecido e não gostasse dele.”
Quando saiu de casa, Nelson falou ao filho: “‘Estou com outra mulher, que está grávida.’” Chamava-se Lúcia, veio a ser mãe de Daniela, a filha de Nelson Rodrigues que nasceu cega. Viveram juntos sete anos.
“A saída do velho estava já acertado com a minha mãe, mas ela deu uma caída brava”, lembra Nelsinho. “Eram 23 anos de casamento. Eu diria que metade da obra do velho não teria acontecido se ele não tivesse casado com a minha mãe. Porque ele escrevia, e escrevia, e escrevia. Embora estivesse sempre presente. A gente adorava ele. Todo o dia acordava 9h, 9h30. Minha mãe levava uma banana amassada para ele não fumar de barriga vazia. Depois descia, acabava de tomar o café e ia para o jornal. Nunca botou a mão num filho. Nem admitia peteleco assim…” Dá um piparote no ar. “Não admitia num filho e mais tarde não admitia num preso.” Afectuoso? “Sem ser pegajoso. Não podia pegar criança no colo por causa da tuberculose. Mas todos os domingos eu, minha mãe e ele íamos ao Maracanã, depois chamado Estádio Jornalista Mário Filho, o irmão dele.”
Filho de um fundador de jornais com 14 filhos, Nelson Rodrigues teve vários irmãos jornalistas. Além de jornalista, Mário era um empreendedor, ajudou a erguer o Maracanã. Nelson fez toda uma série de crónicas desportivas e Nelsinho é até hoje, aos 67 anos, jornalista desportivo, além de realizador e argumentista. “Tenho flashes de ver um jogo em 1951 com o Fluminense sendo campeão.” Tinha seis anos. E o pai festejando a vitória. “O velho dizia que já era Fluminense bem antes da presente reincarnação.’” Fez do Fla-Flu um clássico escrevendo coisa como: “Fluminense e Flamengo são os Irmãos Karamazov do futebol brasileiro.”
Voltemos a 1963. “Quando o velho saiu de casa, eu falei: ‘Tudo bem.’ Acho que os casais não têm obrigação de ficar juntos. E sempre fui muito parceiro da minha mãe, e ela muito parceira minha. Em quase oito anos de prisão, era sempre a primeira a chegar.” Mas Nelson Rodrigues não foi aquele moralista que louvava o casal para sempre? “O amor para sempre”, contrapõe Nelsinho. “E ele voltou para a minha mãe. Nos últimos quatro anos antes da morte dele [em 1980] ficou com ela, não sem antes namorá-la. Dizia: ‘Nada como ser amante da própria esposa.’ Figuraça, o velho.”
Nelsinho |
Mesmo no tempo em que o pai viveu com Lúcia não acabou o convívio diário. “Dia de semana o almoço era em casa da minha avó paterna, e a mesa era uma discussão política só. O meu tio Milton era um esquerdista, eu estava a ficar alerta e o velho discutindo era sensacional. Deixava você falar tudo, aí falava uma frase desse tamanho [aproxima indicador e polegar] e acabava com você. E ainda matava você de rir. Aquelas metáforas ma-ra-vi-lhosas!” É um fã que fala. “Quanto mais a gente se afastava politicamente, mais se aproximava no amor. Eu tinha um respeito muito grande ao velho.”
Nelsinho conta a história da sua professora de violino de 18 anos que se apaixonou pelo professor dela de 54. Um escândalo no bairro, que levou os vizinhos a fazer um abaixo-assinado pelos bons-costumes. “Levaram o papel ao velho e ele disse: ‘Não assino. Vocês estão matando essa menina.’ Dois ou três dias depois o casal se matou. O velho foi profeta. Porquê? Sabia que era um amor verdadeiro. É recorrente na obra dele, o morrer por amor.” Outro tema santo é a amizade, sendo que os maiores amigos de Nelson Rodrigues eram esquerdistas.
O que fez então com que este homem apoiasse o golpe militar de 64? “Era acirradamente anti-comunista. Um dia perguntou a um amigo no jornal: ‘Se o partido mandar você me matar, você mata?’ O amigo disse: ‘Mato.’ Ele pegou um horror do comunismo.” Nesse tempo, lembra Nelsinho, o mundo estava dividido entre a influência dos EUA e a influência da URSS. E no começo, “um monte de gente ficou a favor do golpe”. Os militares disseram que iam fazer eleições. Depois é que começaram as marchas de protesto, contemporâneas da guerra do Vietname. Nelson falou ao filho: “‘Nelsinho, nos Estados Unidos acontece de tudo. Na União Soviética, o cara que é contra o governo vai para a Sibéria. Então, porque não estão contra a União Soviética? Porque não houve uma grita contra a invasão da Hungria, da Checoslováquia?’ O velho dizia que preferia a liberdade ao pão.”
Nelsinho começou a entrar nos protestos contra o regime, em 1968 formou-se e em 1969 viajou com a turma. “A gente ficou seis meses na Europa. Estivemos na União Soviética e na Checoslováquia, onde havia uma mágoa grande [com a invasão]. O Otto [Lara Resende, grande amigo de Nelson Rodrigues] era o adido brasileiro em Portugal, e estávamos lá quando soubemos do sequestro do embaixador americano no Brasil.” A acção mais espectacular da luta armada contra a ditadura. “Quando voltei a repressão estava mais violenta. Eu já tinha saído daqui revoltadíssimo. Aí, disse: tem dois lados no Brasil e eu estou do lado de cá.” O do combate. E do outro lado, o pai. “Às vezes ele escrevia de uma forma mais ácida e eu discutia com ele de forma mais ácida.”
O diálogo nunca parou. Quando o filho foi para o MR-8 — um dos grupos que sequestrara o embaixador —, Nelson pediu ao seu grande amigo Hélio Pellegrino que falasse com Nelsinho. “Aí o Hélio soube que eu já tinha feito acção armada. Fiz muita, muita acção armada. Quando fui preso, em 1972, tinha 27 processos abertos contra mim, alguns inventados.” Vivia na clandestinidade, mas chegou a ligar ao pai de telefones públicos por causa de alguma crónica. Um dia, “estava na rua, passou um carro, abriu a porta e era um cara assim…” Imita uma metralhadora.
A prisão começou com “três dias de barra pesada de tortura”, resume Nelsinho, sem detalhes. Não há nele nada de vítima. Mas quando a repórter pergunta, responde directamente: “Choques eléctricos nas zonas genitais, afogamentos, espancamentos.” Os interrogadores perceberam que era o filho de Nelson Rodrigues ao verem-no nu: tinha o peito afundado, defeito de nascença. Quando o filho foi preso, Nelson Rodrigues avisara os militares: “Olha, o Nelsinho tem o peito afundado.” Tentou “de tudo o que é jeito” intervir e logo que o deixaram foi ver Nelsinho. “Me perguntou: ‘Você foi torturado?’ Eu disse: ‘Barbaramente.’ A cara do velho. Aí caiu a ficha. A partir do momento em que soube, não deixou de escrever a favor da ditadura, não podia ‘chutar o balde’, até para me proteger, mas mudou em ênfase.”
Isso deu frutos. “Ao fim de dois anos conseguiu que eu saísse do Brasil: eles me botavam num avião. Mas eu disse que não.”
Mais uma vez não entra em detalhes, é a repórter que pergunta porquê. “Só sairia quando saísse todo o mundo. Eu era um preso muito importante por ser filho do velho. Não dá para você sair por protecção. A gente está junto numa briga. Esse colectivo de presos foi muito forte. Tanto é que a gente fez a greve de fome pela amnistia em 1979.” Mas já antes da prisão do filho, Nelson Rodrigues lutara contra o delito de opinião: “Quando o Caetano Veloso foi preso [em 1968], o velho escreveu várias colunas dizendo que ele não podia ser preso por falar e cantar, que o artista tem de ter liberdade de expressão.”
Nelsinho saiu da cadeia em 1979, ano da anistia. “O velho já falava em anistia desde 1975, e escrevera que eu tinha sido torturado, e era contra amnistiar torturadores. Então você já vê que reaccionário era. Ele se dava esse adjectivo por ser contra o comunismo. Era um artista. Foi o cara mais censurado do Brasil.”
(Públicado em 31-8-2012)
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