"Não fui eu... Não fui eu..."
O tabu em torno da flatulência pode ser explicado através da historia e da cultura
Marcelo Bulgarelli
Equipe O DIÁRIO
Estou vivo, mas não tenho corpo
Por isso é que eu não tenho forma
Peso eu também não tenho
Não tenho cor
Quando sou fraco, me chamo brisa
E se assobio, isso é comum
Quando sou forte, me chamo vento
Quando sou cheiro, me chamo pum
(O Ar, Vinícius de Moraes)
Um famoso fotógrafo da cidade trabalhava numa sessão de fotos com uma bela modelo. Dezenas de fotografias já haviam sido tiradas, quando ele resolveu disparar o obturador da máquina pela ultima vez, dando por encerrada a sessão.
Mas ao apertar o obturador, o desastrado fotógrafo deixou escapar um barulho constrangedor, embora muito conhecido e bem diferente do flash. "Foi no momento em que me agachava.Tive vontade de me enfiar dentro da máquina fotográfica. Não tinha como disfarçar. Não queria nem olhar pra cara da modelo", revelou.
O nome do fotógrafo em questão será mantido em absoluto sigilo por ele ter sido vítima de algo que acontece todos os dias com qualquer mortal. Porém, sem aviso, o ato explosivo causa os mais diversos constrangimentos, sempre ocorrendo no local errado e na hora errada.
"A flatulência é a saída em excesso dos gases. Apesar do constrangimento social, é algo natural e mesmo em excesso não significa uma doença, porém pode ser um sintoma. Tenho pacientes que sequer querem sair de casa devido ao problema", explica o gastroenterologista Heine Macieira.
"Flatular" é inerente aos animais, tanto carnívoros como herbívoros. É um ato necessário para o movimento intestinal.
"Mesmo se não fosse necessário, teriamos gases de qualquer forma pois engolimos ar e saliva a cada cinco segundos", esclarece. Logo, quem fuma deve também arcar com as conseqüências.
Cientificamente falando, a fórmula é a seguinte: para cada litro e meio de saliva, produzimos um quilo de pum diário. Não adianta dizer que isso não ocorre com você. Os períodos de flatulência alternam, estando a pessoa acordada ou dormindo. É considerado excesso quando a produção chega ao equivalente a três quilos.
Essa fórmula já foi cientificamente testada em pacientes e voluntários através de um tubo ligando o reto a um aparelho de medição.
Basicamente, um pum se constitui de oxigênio, gás carbônico e nitrogênio. Porém, na saída também é composto pelo metano metano (CH4). Todos são inodoros. O cheiro é produzido pelo enxofre derivado das bactérias.
O metano é um gás considerado perigoso em determinadas situações. Um repentino peido em meio a uma intervenção cirúrgica pode deixar seqüelas no paciente,principalmente em se tratando de cauterização por instrumentos elétricos.
Acidentes desse tipo são raros, segundo o gastroenterologista.
Um acidente de grande repercussão ocorreu em abril de 2002, na Dinamarca. O paciente de um hospital teve um ataque de flatulência durante uma cirurgia. O gás escapou no momento em que um médico usava uma faca elétrica para retirar uma verruga das nádegas da vítima. A fagulha provocou uma explosão, queimando as nádegas e órgão genitais do paciente. O hospital foi processado, apesar dos médicos não se responsabilizarem por puns acidentais.
No Brasil, o maior perigo na utilização do metano é uma brincadeira muito comum entre jovens que chegam a encostar o isqueiro no momento do pum. A escatológica atitude já resultou em queimaduras de primeiro grau.
Em estado de estresse, engolimos muito mais ar (aerofagia). Logo, produziremos muito mais puns. Outra fonte causadora dessas explosões íntimas é a comida. Quem solta rojões com freqüência deve mudar a dieta. "O intestino tem diversos tipos de bactérias, mas qualquer desequilibro altera a flora bacteriana", adverte o médico.
Carne, devido a longa putrefação, é um dos alimentos causadores do mal cheiro. A fermentação da cerveja também colabora, mas até hoje nenhum bar foi interditado devido a alta concentração de gases. É bom evitar feijão (principalmente a casca), cebola e alho. Tal odor vem das bactérias e das proteínas, não do metano.
Cientificamente explicado, fomos buscar na historia os motivos para tanto tabu em torno da flatulência. O psicoterapeuta Sildemar de Barros aponta para a questão da religiosidade, principalmente no mundo ocidental, a partir da Idade Média. A figura do diabo sempre foi associada às fezes e excrementos e ao enxofre. "Arquetipicamente falando, assim é tratada a questão na memória do inconsciente coletivo", analisa.
Na área comportamental, o ato de peidar está relacionado ao exibicionismo. Como se fosse um hobby, há quem não consiga deixar de soltar um pum quando entra no automóvel ou no momento em que chega em casa. Ou pode ser uma forma inconsciente de agressão.
Isso é comum no adolescente que vive uma fase onde ele quer "quebrar as regras". Exemplo é o pum no elevador, considerada a "mais covarde" das brincadeiras. "É pior do que se um dos passageiros estivesse fumando, pois ninguém fica sabendo quem foi o autor do disparo", analisa Sildemar.
Problemas psicossomáticos, como a ansiedade extrema, fazem com que a pessoa engula muito ar. Conseqüentemente, terá problemas gasosos. "A questão passa por uma situação, de tensão. Isso provoca até depressão. Quem engole muito ar está querendo preencher um vazio por dentro".
Quem fala ou faz comentários sobre puns provoca asco ou gargalhadas. "As pessoas riem de vergonha. Na área rural isso é mais aceito, tanto o arroto como o pum. Faz parte da natureza".
O pum está ligado ao universo infantil. Brincadeiras como "qual o mais barulhento" ou o "mais fedido" são realizadas coletivamente. Em Maringá, a peça infantil "O Gato de Botas Vermelhas" tinha um personagem, um rei, que adorava comer coxinha de frango.
Assim, o rei vivia soltando puns. No primeiro, a platéia reagia com um certo constrangimento. Do segundo em diante, caia na gargalhada. Nota: a sonoplastia era gravada e foi feita a partir do barulho provocado quando se assopra uma parte braço.
Como adiantamos, a flatulência ocorre em todas as pessoas e animais. Tartarugas, cães, elefantes e até a Daniela Cicarelli não escapam. Na Nova Zelândia, os pecuaristas quase que tiveram de pagar US$4,9 milhões ao ano em impostos por causa dos gases emitidos pelo gado.
O objetivo do imposto era reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa. O metano e o dióxido de carbono podem influenciar o aquecimento do planeta. Ainda bem que a idéia não chegou ao Brasil. Qualquer governante não hesitaria em criar imposto para cidadãos produtores de gases. Licitações seriam abertas para a compra de medidores.
Mas gases, de maneira geral, fazem mal a arte. Um químico atmosférico (sugestivo nome) inglês afirma que os gases emitidos pelos visitantes flatulentes em galerias e exposições de arte estragam os pigmentos das pinturas. Chega a sugerir que os curadores dos museus não permitam que tais visitantes se aproximem dos quadros em exibição.
No Canadá, um inventor lançou uma cueca à prova de puns. Elas contam com um filtro de carvão para retirar os gases antes que eles se escapem. O inventor criou o artefato após explosivas sessões noturnas provocadas pela esposa.
Pum é cultural.
O maior tratado sobre o assunto é o livro Who Cut the Cheese? - A Cultural History of the Fart (Quem cortou o queijo? - Uma historia cultural sobre o peido"), de Jim Dawson, ainda inédito no Brasil. Ele mostra como guerras e fatos históricos ficaram marcados pela simples emissão de um pum.
Dawson relata um fato ocorrido em 44 d.C, em Jerusalém, durante o Pessach, feriado judaico. Os judeus lotavam a cidade que era vigiada de perto pelos soldados romanos. Tudo estava aparentemente tranqüilo quando um romano resolveu ofender aquele povo. Ficou de costas e soltou o rojão. O povo se rebelou. Começou uma batalha entre judeus e romanos. Dez mil pessoas teriam morrido.
Outro destaque do livro é o artista Lê Petomane, um dos mais populares de Paris no final do século 19. Ele conseguia encher seus intestinos de ar e disparava rojões (inodoros) da maneira que bem entendesse. Imitava sons de animais, de instrumentos musicais e até parte do hino francês, La Marseillaise. Acredite se quiser.
Ponto final. A conclusão é que a flatulência é o inevitável a ser evitado. Deve ser tratada com naturalidade, mas com discrição. É natural, mas suas formas de utilização são culturais. E quem nega é aquele que está com a mão amarela.
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