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domingo, setembro 11, 2011

Sidney Miller


A primeira vez que ouvi Sidnei Miller foi tão marcante que, curiosamente, todos os detalhes ficaram registrados na minha memória, mesmo os mais insignificantes. Estava na casa do meu amigo Francha e seus irmãos, um sobrado antigo de Poços de Caldas, na rua Santa Catarina, onde (soube depois) meu avô paterno e filhos moraram logo que chegaram da Argentina, lá pelos idos dos 20.
O Francha tinha uma velha rádio de ondas curtas, de rabo quente, que pegava uma emissora de Buenos Aires e chamara a turma para testemunhar o feito. Enquanto corria o dial, procurando a emissora portenha, passou por uma rádio brasileira. Os poucos segundos de melodia que captamos bastou para que eu pedisse para deixar a música terminar. Parecia uma melodia provinda das profundezas do tempo, que passara por bisavós, avós e mães e, agora, docemente, pedia licença para entrar. Era "Menina da Agulha". "Que menina é aquela / que vem de tão longe, tão longe / tão triste e pensativa ela vem de longe". A conversa parou e ficamos ali embevecidos, esperando a música terminar para saber o nome do autor e intérprete. Era um tal de Sidnei Miller, do qual nunca ouvíramos falar.
Ali mesmo separei parte da mesada, que gastaria à noite no pimbolim, para comprar o LP de Sidnei Miller. Levou algumas semanas até que chegasse em "A Musical", única loja de discos da cidade. Durante meses, nossas namoradas levaram uma overdose de "Menina da Agulha", "Maria Joana", "Maria" e por ali vai, 12 músicas impecáveis, secundando letras que lembravam a doçura de Casimiro de Abreu.
Sidnei Miller tornou-se tema preferencial de nossas conversas musicais. Fazia algum tempo que Chico Buarque tinha estourado com "A Banda". Em plena efervescência dos festivais de música, a imprensa bem que tentou criar uma disputa entre ambos, mas não colou, porque eram muito inteligentes e tímidos para embarcar na onda.
Comparações musicais não passam de bobagens, diziam os membros mais intelectualizadas do nosso grupo. Mas a maioria acreditava piamente que "O Circo", de Sidnei Miller ("Vai, vai, vai, começar a brincadeira / tem charanga tocando a noite inteira / vem, vem, vem, ver o circo de verdade / tem, tem, tem, picadeiro e qualidade"), era superior a "A Banda", de Chico, embora a gente tivesse certeza de que Sidnei tomara emprestado de "Olê Olá", do Chico, aquele jeito de ir subindo os acordes, um a um, que nem escadinha, que era o encanto de todos nós, aprendizes de músico.
Em pouco tempo, Sidnei Miller tornou-se estrela de primeira grandeza dos festivais, ao lado de Chico, Gil, Caetano, Edu, Vandré e Paulinho da Viola. E todos seus lançamentos eram aguardados, por todo o interior e também por Poços, para imediata incorporação ao repertório das serenatas.
Acho que nas artes, assim como na vida, tem um negócio chamado "estrela". Tem gente com "estrela", tem gente sem. Embora os dois fossem tímidos, músicos de primeira, letristas dos maiores e não perseguissem o sucesso fácil, Chico tinha "estrela", Sidnei não.
Quando veio a grande noite da ditadura, Chico reagiu com declarações e com sátiras, Sidnei com músicas soturnas. Chico passou a incursionar pelo teatro, com "Roda Viva" (arghh, com todo respeito), que a gente vinha ver em São Paulo, de ônibus de excursão, pagava ingresso, era xingado pelos atores durante toda a peça, e voltava elogiando, pois eu não era besta de chegar em Poços e admitir que varara a noite viajando para ser xingado -e ainda por cima pagar por isso. Mas dava ibope para Chico, enquanto Sidnei se recolhia à sua timidez.
Não lembro de discos lançados por ele nos anos 70 e 80, das músicas, sim. Já em São Paulo, "Pois é, pra quê" (acho que o nome era outro), com o MPB4, tornou-se o hino máximo contra a ditadura em todas as rodas universitárias da época. Anos depois, Clara Nunes estourou com uma música bonita que falava de tamborins e cavaquinhos. Mas o autor continuava no limbo, ignorado pela crítica e pela mídia.
Acho que foi na primeira metade dos anos 80 que se deu a tragédia. Estávamos no "Vou Vivendo", um bar musical de São Paulo, quando apareceu Eduardo Gudin, esbaforido. Tinha acabado de chegar do Rio, do funeral de Sidnei Miller. Com voz baixa, de quem comete uma inconfidência, disse que Miller tinha se matado. Os jornais deram notas pequenas sobre a morte dele, sem entrar em detalhes.
Tempos ainda de autocensura e de teorias conspiratórias, alguns atribuíram sua morte à depressão permanente que lhe tinha sido imposta pela ditadura. Outros, à perda de um cargo na Funarte. Tenho cá para mim que Sidnei foi morto não pela ditadura, mas pela falta de memória nacional.
Desde então, as lembranças de Sidnei Miller são transportadas pelo tempo por meio de pequenas rodas musicais, pelo clube pequeno e seleto de fãs, que guardou suas melodias. Seu primeiro LP jamais saiu em CD. Os amigos músicos do Rio dizem que a viúva sumiu com os filhos nas dobras do tempo, como uma "Menina da Agulha" que foi para tão longe, levando lembranças e músicas inéditas.
Mas até hoje, em qualquer roda caseira, basta um músico sacar da algibeira uma composição de Sidnei Miller para estabelecer imediata cumplicidade com os demais que a conhecem. Basta uma troca de olhares, coisa de maçom, de guerrilheiro, sei lá, desses que identificam na hora as afinidades, como se um falasse para o outro "você é dos nossos". E uma emoção profunda, inexplicável, toma conta do ambiente, como se a tristeza ancestral de Sidnei baixasse na sala, sei lá pra quê. (Luis Nassif - Sei lá pra quê - Folha de São Paulo 20/Dez/98)

2 comentários :

josé roberto balestra disse...

Sou apaixonado por essa melodia. Sempre que posso a toco; ainda ontem, em Paranavaí, com meu velho amigo de banda, Evaldo Polaco... E ele não a conhecia.

Bulga disse...

Balestra,
pretendo, em breve, postar uma coletanea do Sidney. Aguarde.