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sábado, fevereiro 24, 2018

Causos de jornal

Por Eduardo Ribeiro

"História de redações ainda precisa ser contada",

copyright Comunique-se ( 24/02/05)

"É um inenarrável prazer acercar-se da velha guarda do jornalismo e, entre goles de cerveja e muita risada, ouvir deliciosas histórias de como eram as redações nos anos 40, 50, 60... São dezenas, centenas, certamente milhares os causos que se contam pelos botecos da vida e que ainda não foram publicados, privando as novas gerações da rica história de seus antecessores. Por paradoxal que possa parecer, a nossa é uma história de tradição oral, em que as pessoas, mais do que escrever, preferem contar. José Aparecido, colega que viajou antes do combinado para o andar de cima há alguns meses, era o típico jornalista da velha guarda com o perfil acima. Adorava contar histórias e vivia prometendo que um dia escreveria um livro com elas, para ‘ficar rico’.

Não deu tempo. Mesmo trocando a metrópole pela aconchegante cidade de Presidente Epitácio, no interior paulista, nos últimos anos de vida, não conseguiu tempo para colocar no papel aquelas memórias. Logo se meteu a escrever para um jornal e depois para outro, e assim o que inicialmente seria descanso transformou-se em trabalho e assim foi praticamente até a morte. Zé Aparecido tinha histórias hilariantes, como veremos abaixo, mas não era um saudoso do jornalismo daqueles anos. Ao contrário. Tinha consciência das deficiências técnicas e éticas que atingiam veículos, donos de jornal inescrupolosos e mesmo profissionais de caráter, digamos assim, maleável, que não titubeavam em utilizar a condição de jornalista para auferir vantagens pessoais. O divisor de água, nesse sentido, pode-se dizer que foi a regulamentação profissional e a obrigatoriedade do diploma, na segunda metade dos anos 70, quando o perfil profissional das redações começou a mudar radicalmente. A molecagem deu lugar à sisudez, fazendo com que o romantismo - o principal legado daquele período - desaparecesse de mentes e corações, substituída pela objetividade, característica, aliás, que muitos também chamam - até com certa razão - de arrogância. Mas a evolução, segundo esses próprios colegas, é nítida. Hoje se tem muito mais respeito profissional pelo jornalista do que se tinha antingamente, tanto por parte dos patrões, quanto das autoridades e da própria sociedade. Mas aqui o nosso negócio não é falar de assunto tão árido e sim das boas histórias. Elas nos ajudam a rir e, em conseqüência a desopilar o fígado, coisa que a cada dia fica mais rara. Uma das histórias do Zé Aparecido, que me lembro, envolvia o Cláudio Abramo, um dos mais respeitados profissionais da história do jornalismo brasileiro do Século XX. Por onde passou, deixou sua marca, incluindo o Projeto Folhas, que iniciou e dirigiu por vários anos.

Cláudio Abramo era rigoroso ao extremo e o que se poderia chamar de um chefe zangado. A passagem que Zé Aparecido contava deve ter acontecido na Última Hora, lá pelos idos dos anos 60. Se não era a UH talvez fosse o Diário Popular ou quem sabe o Diário de São Paulo. Francamente, não me lembro. O que sei é que era uma daquelas tardes modorrentas, com pouca coisa acontecendo e, de repente, entra na redação um leitor que dá de cara com o Zé Aparecido. Contou a ele a razão da visita - uma reclamação - e perguntou com quem poderia falar a respeito. Rápido no gatilho, Zé Aparecido disse que ele deveria se dirigir ao senhor que sentava-se na última mesa da redação - o chefão ali -, e recomendou: ‘Fale bem alto - grite mesmo - pois aquele senhor é surdo feito uma porta e se você falar baixo ele não vai escutar’. Disse isso e, claro, se mandou pro bar, pois tinha consciência do teor explosivo da brincadeira. Resultado, a redação inteira parou vendo aquele senhor berrando com Cláudio Abramo e riu-se a valer vendo Cláudio Abramo colocando aquele senhor pra fora, também aos berros, dizendo que naquela redação ninguém era surdo. O que se deu depois não sei contar, mas não consta que o Zé tenha perdido o emprego.

Um outro causo, também muito engraçado, envolveu um revisor do jornal. Era um sujeito metódico, de poucas palavras e muito elegante, sempre trajando terno. Chegava todos os dias no mesmo horário, colocava suas coisas sobre a mesa, o chapéu no suporte e ia ao banheiro para começar o dia bem apessoado e, digamos assim, zerado. Era o sujeito ideal para uma pegadinha, num tempo em que nem se pensava nisso. Montado o plano, imediatamente se puseram a executá-lo. No dia combinado, tão logo o colega chegou e foi ao banheiro, um dos gaiatos foi lá e trocou o chapéu. Era um modelo igualzinho, porém menor um pouco. Logo que voltou do banheiro, em intervalos regulares, vinha alguém - sempre uma pessoa diferente - e perguntava, com seriedade, se estava tudo bem com ele. Lá pela quarta pessoa, ele achou estranho e quis saber o por que daquela preocupação. E o interlocutor, simulando algum constrangimento, dizia: ‘nada não, é que parece que sua cabeça está um pouco inchada’... O revisor ficou com aquilo literalmente na cabeça e ao ir embora percebeu que, de fato, o chapéu já não lhe estava caindo tão bem. No dia seguinte, a operação foi repetida, agora com um chapéu ainda menor do que o do dia anterior. Antes que os amigos pudessem contar a travessura, o tal revisor se escafedeu, indo diretamente para um hospital para ver o que estava acontecendo com ele e com sua cabeça inchada... Claro que o resultado foram sonoras gargalhadas, não sem antes uma ponta de preocupação pelo que poderia ter acontecido com a ‘cabeça’ do tal revisor, a partir daquela brincadeira. Mas tudo acabou bem e foi mais uma das passagens que entraram para o folclore das redações, sem nunca ter sido escrita. E se figuras como Zé Aparecido aprontavam com chefes como Cláudio Abramo e mesmo com colegas de trabalho, imaginem só o que não faziam com os pobres dos focas... Eram, sem dúvida, as vítimas prediletas. Quantos não foram à gráfica entrevistar a calandra, ou tiveram de ligar para funerárias para fazer um levantamento sobre preços de caixão de arquivo morto... Revivi algumas dessas histórias esta semana, num evento do qual participei ao lado de um grupo de jornalistas, em Porto Alegre, organizado pela General Motors do Brasil, em comemoração aos seus 80 anos de Brasil. A programação incluía duas visitas: uma ao incrível Museu de Carros Antigos da Ulbra, em Canoas, e outra à fábrica da montadora em Gravataí. Fiquei grande parte do tempo ao lado de Mário Pati, que, em seus mais de 70 anos de vida e uns 50 de jornalismo, é um acervo vivo de nossa atividade. Me deliciei com suas lembranças.

No Museu da Ulbra, fizemos uma viagem no tempo olhando relíquias sobre quatro rodas desde a década de 20 até os dias atuais, e ele a contar passagens e mais passagens que vivenciou naquele período, algumas como jornalista, outras como piloto de corridas e também como diretor da mais importante prova do calendário brasileiro de automobilismo, o GP Interlagos de Fórmula 1, nos anos 70.

Disse-lhe: ‘Mario, como é que essas histórias não estão escritas em lugar algum?!?! Você precisa escrevê-las.’ Ele limitou-se a sorrir e a dizer: ‘Quem sabe um dia...’"

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