Sempre gostei dos textos do jornalista botafoguense Arthur Dapieve. Em A FORRA DO VINIL, publicado no Jornal "O Globo", de 27/07/2012, ele fala sobre a resistencia do bom e velho LP.
Não, crianças, a grande subversão na reprodução da música gravada não foi a popularização do MP3 ou outros arquivos digitais. O que a indústria fonográfica perde com downloads gratuitos é troco perto do que ela ainda ganha e, sobretudo, ainda almeja ganhar com a venda on-line. Ou alguém acha que a Apple, dona do iTunes, é uma instituição de caridade? Não, é capitalismo tão avançado que vende o capitalismo como estilo de vida libertário. A grande subversão, então, foi a sobrevivência dos LPs.
Com isso, sim, a Indústria Cultural, o Sistema, a Mídia, a Grande Imprensa — ou qualquer outra dessas designações paranoicas que subestimam a capacidade de o indivíduo fazer escolhas e pensar por si próprio — não contava. Era para o CD ter transformado o LP em “celacanto”, sobrevivente das profundezas. Era para o MP3 ter transformado o CD em Tiranossauro Rex, outrora poderoso, hoje morte de pedra. A história, porém, não foi essa. O “bolachão” preto está mais forte agora do que estava há vinte anos. E, suspeito, o disquinho prateado também jamais irá desaparecer.
Pesquisa encomendada pela revista “Billboard” sobre o mercado fonográfico americano, o maior da Terra, revelou que no primeiro semestre de 2012, a venda de discos de vinil cresceu 14,2% em relação ao mesmo período do ano passado, contra um aumento de 13,8% dos álbuns digitais e uma queda de 11,3% dos CDs. O capitalismo pode até já estar se reorientando diante desses dados (afinal, a capacidade de adaptação é a chave de sua sobrevivência), mas o buraco da faca continua bem ali, nas suas costas.
Lá por 1992, nem executivos nem consumidores casuais apostariam um centavo na sobrevivência do LP frente ao CD. Era suporte caro de produzir, difícil de carregar, necessitado de cuidados e dependente de aparelhos de reprodução mais caros. Apenas os colecionadores e um ou outro comerciante intuíram que a história não terminaria aí. Lembro-me de Pedro Passos, da Modern Sound, mostrando o “bunker” do subsolo onde haviam se refugiado os LPs. Ele acreditava que, cedo ou tarde, aquilo constituiria um tesouro. Infelizmente, a sua clarividência não bastou para evitar o fechamento da loja.
Durante muito tempo, era quase impossível achar um lançamento musical feito também em vinil e, mais até, achar toca-discos e agulhas para reproduzir discos antigos. Quando meu aparelho quebrou, passei anos sem ter onde ouvir meus LPs — mas incapaz de me desfazer da maior parte deles, inclusive por razões sentimentais. Finalmente, decidi desembolsar uma quantia considerável por um Gradiente usado, comprado, claro, na saudosa Modern Sound. Embora (ainda?) não se encontrem toca-discos em redes de eletrodomésticos do Brasil, hoje está mais fácil encontrá- los, bem como os novos álbuns em vinil. Haja vista uma matéria de capa recente na revista “Rio Show”.
Como ou por que, contra quase todos os prognósticos, o bolachão sobreviveu? Graças, certamente, aos colecionadores, que sustentaram as pequenas gravadoras que lançavam joias de 180 ou até 220 gramas (o peso do disco influencia a qualidade do som). Acredito, entretanto, que quem salvou mesmo o LP foi a cultura dos DJs, com suas mesas e seus scratchs. Assim como os árabes preservaram os clássicos gregos durante a Idade Média, foram os DJs que tomaram conta do vinil até a sua renascença.
A pesquisa encomendada pela “Billboard” é nova, mas seu resultado não é nada surpreendente. Cinco anos atrás, quando a última fábrica de LPs do Brasil, a Polysom, estava fechando (seria comprada e reaberta por João Augusto, da Deckdisc), o resto do planeta já testemunhava o aumento do espaço destinado ao vinil nas lojas sobreviventes. Quando deixaram de ser um fenômeno apenas na internet e chegaram ao primeiro disco, em 2006, os Arctic Monkeys espantaram os lojistas da sua Grã-Bretanha: “Whatever people say I am, that’s what I’m not” vendeu mais como LP do que como CD.
Sinal de que o vinil não era só o fetiche de velhos nostálgicos ou o material de trabalho de profissionais da noite, mas também tinha apelo para jovens ouvintes em busca de uma relação diferente com a música. Pela má qualidade média dos arquivos digitais e pela disseminação dos tocadores, o MP3 praticamente exige a audição apressada, individual, com fones. Pela pressão sonora e pelo aparato necessário, o vinil pede, se não uma reunião de amigos, uma cerimônia caseira, vagarosa. Colocar um LP no prato e em menos de meia hora trocá-lo de lado implica prestar atenção no que se está a fazer. Ou seja, em nossos tempos corridos, era mesmo para o LP ter desaparecido.
No romance “Juliet, nua e crua” (2009), Nick Hornby escreveu que o MP3 guarda uma relação mais pura e poética com a música gravada, enfim libertada de lastros materiais. É uma visão interessante, embora, na prática, a maioria das pessoas use o arquivo digital como trilha sonora do cotidiano, a música de fundo da limpeza da casa ou da malhação. Além disso, um arquivo digital não se toca sozinho, sem a concretude do iPod ou do computador. Certo, crianças, a praticidade do CD não raro também o tornava parte da paisagem, apesar de ele ainda ser imbatível para reproduzir a dinâmica da música clássica, por exemplo. Já o LP... Ele transforma a música no centro da vida.
(O GLOBO, 27/07/2012)
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