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quarta-feira, agosto 22, 2012

Glauber Rocha





No vídeo, Glauber Rocha no programa Abertura da TV Tupi, em 1979. Um intelectual que faz falta.
 O cineasta brasileiro de maior prestígio internacional, considerado o grande nome do cinema novo.
Glauber de Andrade Rocha (14/3/1939-22/8/1981) nasce em Vitória da Conquista. Abandona o curso de direito, em Salvador, para trabalhar como crítico de cinema e documentarista, realizando O Pátio (1959) e Cruz na Praça (1960). Seu primeiro longa-metragem, Barravento (1961), é premiado no Festival de Karlovy, na antiga Tchecoslováquia. A partir de 1964 torna-se o cineasta brasileiro de maior prestígio internacional, quando Deus e o Diabo na Terra do Sol recebe um prêmio no Festival de Cinema Livre de Porreta, na Itália. O filme mostra as alucinações, as visões e as práticas que a fome, a miséria e a ignorância inspiram no povo do sertão no século XIX. Glauber ganha também o Troféu Luís Buñuel no Festival de Cannes com Terra em Transe (1967), uma alegoria sobre um jornalista que se une a um líder político para tentar mudar a ordem social e política num país imaginário. Conquista outro prêmio em Cannes – dessa vez, o de melhor direção – com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968). Na década de 70 produz O Leão de Sete Cabeças, no Quênia, e Cabeças Cortadas, na Espanha, que foi proibido pela censura no Brasil até 1979. Publica o romance Riverão Suassuna, em 1977, além de realizar os documentários Di Cavalcanti e Jorge Amado no Cinema. Seu último filme é A Idade da Terra (1980). Morre no Rio de Janeiro.
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Entrevista concedida a Veja(8/09/1976), a Lúcia Rito, ao regressar ao Brasil, depois de cinco anos e meio no exterior.


Veja — Dizem que você está louco, é verdade?
GLAUBER — Não estou louco.
Veja — Há muitos anos afastado do Brasil, você não acha que perdeu um pouco a perspectiva das coisas?
GLAUBER — A perspectiva idealista é fenomenológica, a perspectiva dialética é projetiva. Tenho o direito de falar o que penso, baseado em investigação, percepções e intuições. Assumo a responsabilidade do que disse. O fato de falar uma linguagem toda do código oficial ou oficioso cria um tipo de contradição entre minhas declarações e a sociedade brasileira. Mas eu creio que a contradição é o princípio da prática democrática.
Veja — Longe, como você se atualizava e o que o levou a preconizar uma abertura durante o governo do general Geisel?
GLAUBER — Estudo a história do Brasil e tenho uma vasta informação sobre a cultura e a política brasileiras. Os filmes que faço são produzidos pela realidade econômica, política e cultural do Brasil, e então posso me dar o direito de emitir opiniões sobre eventuais contradições políticas do país. Fiz certas declarações antes de o general Geisel tomar posse e algumas coisas que falei mais ou menos se delinearam no quadro político brasileiro. Não aderi ao governo, porque não disputo o poder nem me interessa satisfazer a centros de poder, sejam eles do governo, de partidos ou de grupos econômicos. Eu posso então emitir opiniões independentes de conceitos vigentes.
Veja — Você diz que algumas coisas se confirmaram. Quais? Houve abertura?
GLAUBER — Não falemos de abertura porque a palavra se desgastou na fechadura, vamos falar de outras coisas. Debates como eleições, estatização e privatização, política externa independente, crise do modelo brasileiro, consciência da crise econômica cultural e política. Ou seja, um processo de desmitificação do processo cultural brasileiro que começou a ser debatido ultimamente. O problema da censura, discutido na imprensa. Tudo isso, comparado ao governo antecedente, é um sintoma histórico positivo dentro da crise. Eu olho a realidade não em relação a utopias mas em relação ao cotidiano.
Veja — Mas você se contradiz, usa metáforas. É acusado de barroco.
GLAUBER — Contesto a objetividade porque ela é um produto da racionalidade, que nego estruturalmente. Sou metafórico e barroco, e assumo isso. A metáfora é a linguagem da poesia, o nível mais profundo da linguagem. E o barroquismo é a incorporação do sexo à vida. O que existe é um reacionarismo lingüístico por parte das pessoas. Estão todos condicionados a ouvir o que querem ou o que devem ouvir e eu estou disposto a dizer o que penso, mesmo que erre. Afinal, o erro é a antítese da verdade.
Veja — Qual sua opinião atual sobre a cultura brasileira?
GLAUBER — Nós estamos a zero do ponto de vista ideológico. A cultura brasileira foi reprimida em suas forças vitais. A explosão dos anos 60 no campo da música, com o Tropicalismo, no teatro, com o grupo Oficina e o Teatro de Arena, no cinema, com o movimento do cinema novo, no jornalismo, com O Pasquim, tudo foi deteriorado pelo processo político e fomos invadidos pela contracultura do rock drogado da CIA e, por outro lado, pelo esquerdismo internacional. E não me venham falar que a culpa é da Censura. Não é, a linguagem é que está viciada pela inércia do pensamento.
Veja — O que fez em seus quase seis anos fora do Brasil?
GLAUBER — Fiz cinco filmes. "Leão de Sete Cabeças", filmado em 1969 no CongoBrazzaville, sobre as lutas de libertação africanas; "Cabeças Cortadas", rodado em 1970 na Espanha; "História do Brasil", feito entre 1972 e 1974 na Itália, uma espécie de documentário sobre os quase cinco séculos de história do Brasil; "Câncer", um filme underground filmado em julho de 1968 antes de "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", lançado na TV italiana em 1975; e, finalmente, "Claro", um passeio audiovisual sobre Roma, que fiz no ano passado.
Veja — Por que permanecem inéditos no Brasil?
GLAUBER — "Cabeças Cortadas" está censurado desde 1973, os outros eu nem trouxe porque não valeria a pena. Sou um cineasta interditado no Brasil desde 1968, quando fiz o "Dragão da Maldade". No entanto voltei, porque estou querendo ficar por aqui e, depois, não tenho medo da Censura. Quando filmo não me preocupo com ela. Filmo o que quero. Depois, se quiserem censurar, que censurem.
Veja — Ao chegar, você declarou que o cinema brasileiro passou de um período de dependência para uma fase de liderança. Como assim?
GLAUBER — O cinema brasileiro sempre esteve marginal ao processo cultural do país. Foi uma aventura de fotógrafos, produtores e diretores, como no caso dos cineastas de Pernambuco ou o célebre caso de Humberto Mauro, em Minas Gerais, nos anos e 30. O cinema no país se desenvolveu em ciclos regionais, carente de mercado e sempre falido em seus resultados econômicos e artísticos, com poucos exemplos de criatividade, das quais o mais importante é "Limite" (1930), de Mário Peixoto, do tempo do cinema mudo, e "Ganga Bruta" (1933), de Humberto Mauro. Todo mundo conhece a fase industrial do cinema brasileiro na época da Vera Cruz em São Paulo, nos anos 50, produto da última fase getulista e do talento de Alberto Cavalcanti na época. Um cinema que resultou frustrado porque se tentava imitar o modelo hollywoodiano numa sociedade subdesenvolvida, sem controle de mercado, dependente da distribuição no mercado externo, um cinema feito por técnicos europeus, sem uma participação criativa brasileira e por isso distanciado da nossa realidade. Um cinema ideologicamente alienado, de uma crise sem identidade. Prova disso é o único filme de sucesso da Vera Cruz ter sido aquele que tocou na mitologia nacional, ou seja, "O Cangaceiro", de Lima Barreto. Ora, o fracasso da Vera Cruz deixou o cinema brasileiro reduzido a um estado de absoluta miséria de produção. Houve então a ruptura econômica, política e cultural dentro do cinema brasileiro com Nelson Pereira dos Santos realizando, em 1955, no Rio, em regime de cooperativa, o filme "Rio, Quarenta Graus", que colocava na tela pela primeira vez contradições da realidade brasileira. Foi proibido pela Censura porque era o retrato verdadeiro da vida na capital brasileira daquela época. Sua proibição inseriu pela primeira vez o cinema brasileiro dentro de um debate ideológico dentro do país. Os intelectuais brasileiros de todas as tendências, os estudantes e a imprensa se movimentaram pela liberação do filme. A experiência de Nelson, que aliás nada tinha de novo no plano internacional, porque ele apenas colocou em prática os métodos de produção do neo-realismo italiano do pós-guerra, ou seja, o cinema de Roberto Rossellini e de Vittorio de Sica, constituiu de qualquer forma algo inédito no panorama do cinema brasileiro. O que, por sua vez, provocou uma revolução na inércia cinematográfica em que o país vivia. Os jovens críticos daquela época e os cineastas que viviam em estado de permanente frustração viram no exemplo de "Rio, Quarenta Graus" uma oportunidade concreta não só de fazer cinema independente do ponto de vista intelectual como de concretizar isso em termos econômicos. Formou-se então em torno de Nelson um grupo heterogêneo de cineastas que nos quinze anos seguintes desenvolveram uma economia, uma técnica e uma estética do filme. E produziram 100 obras, entre curtas e longas metragens, sendo que delas pelo menos dez se tornaram célebres mundialmente. Daí a liderança que o cinema brasileiro passou a assumir.
Veja — Como você responde às críticas ao cinema novo?
GLAUBER — Respondo sempre objetivamente, apresentando um trabalho que foi e ainda está sendo feito. Um trabalho de catorze ou quinze cineastas, diretores e alguns produtores, mais a colaboração de alguns atores e amigos, grupos financeiros que movimentam capitais conosco e conseguem acionar nossa produção. Em 1970, quando foi decretada a morte do cinema novo, ele estava na seguinte situação, que qualquer um pode comprovar nos arquivos de jornais: "Macunaíma", de Joaquim Pedro, depois de um grande sucesso de público e de crítica no Brasil, recebeu ainda em 1970 o prêmio Condor de Ouro, do festival de Mar del Plata, na Argentina. No ano anterior, meu filme "O Dragão da Idade contra o Santo Guerreiro", ganhava o prêmio de melhor direção em Cannes, e "Brasil, Ano 2000", de Walter Lima Júnior, pegava o Leão de Prata em Berlim. "Os Herdeiros", de Cacá Diegues, foi o primeiro filme brasileiro a ser apresentado no festival de Nova York. Todos esses filmes determinaram, em fins da década passada, uma campanha estrutural em diversos níveis declarando a morte do cinema novo, um absurdo. Vamos aos anos 70: a produção continua. "Os Deuses e os Mortos", de Ruy Guerra, "A Crônica da Casa Assassinada", de Paulo César Saraceni, "Como Era Gostoso o Meu Francês" e "Quem É Beta?", de Nelson, "São Bernardo", de Leon Hirszmann, "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro, "Toda Nudez Será Castigada", de Arnaldo Jabor, "Joana, a Francesa" e "Quando o Carnaval Chegar", de Diegues, "Pindorama", de Jabor, "Na Boca da Noite", de Walter Lima, e, recentemente, "O Amuleto de Ogum", de Nelson, "A Guerra Conjugal", de Joaquim Pedro, "Xica da Silva, de Cacá. Então é uma evidente safadeza. Depois de um trabalho cultural sério eu não estou disposto a contemporizar com as pessoas que durante anos tentaram sabotar isso, confundindo a opinião pública e exigindo de nós posições que estão colocadas nos filmes que realizamos.
Veja — Você conseguiu descobrir o porquê das críticas negativas?
GLAUBER — O crítico do filme brasileiro já o coloca como um produto exótico, subdesenvolvido. Nunca um filme brasileiro é colocado no mesmo nível do estrangeiro, o crítico já vem colonizado antes de entrar no jornalismo. E isso não muda desde a época em que eu era crítico. De todos os ex-colegas, com exceção de Alex Viany e de Paulo Emilio Salles Gomes — um crítico teórico em nível universitário — nenhum comprou a briga do cinema novo na imprensa. Hoje, o nível do absurdo é incrível. Ely Azeredo, que batizou o movimento de "cinema novo", ficou contra. Jean-Claude Bernardet, um crítico que veio do grupo, também acabou ficando contra. Para Ely e Antônio Moniz Viana, o cinema novo é, como diria o deputado José Bonifácio de Andrade, um movimento financiado pelo comunismo internacional, financiado por Havana, Pequim e Moscou. E eles são tão burros que não distinguem nem as contradições existentes entre os três países. O Moniz me chamava no Correio da Manhã em pleno 1968, de "globe trotter da tricontinental". Em O Globo já fui acusado até mesmo de agente castrista e defendido, imagine, pelo Ibrahim Sued.
Veja — Quais as contribuições ao nível de técnica trazidas pelo cinema novo?
GLAUBER — Quando começamos, não se sabia fotografar para o cinema no Brasil. Luís Carlos Barreto e Mino Carneiro ensinaram a fotografia cinematográfica neste país. Hoje, há cinegrafistas internacionais, como Dib Lutfi, Fernando Duarte, Pedro Duarte, Lauro Escorel e Manso Beato. Mas isso não existia em 1962. Não reconhecem isso e tentam sabotar o cinema novo, esquecidos de que um país sem cinema é um país desfibrado do ponto de vista ideológico e estético.
Veja — Muitos acusam os filmes do cinema novo de serem herméticos.
GLAUBER — Outro absurdo. Outra mentira. O cinema é baseado em produção, em distribuição. Você investe dinheiro e o dinheiro deve entrar. Nós somos um grupo com uma estrutura econômica própria, somos produtores independentes, nós co-produzimos, somos uma tribo. Não lutamos pelo sucesso de um filme e sim por todo um tipo de produção próxima da realidade brasileira, que possa conquistar o público. A discussão sobre o hermetismo é falsa e paternalista. A questão é filosófica. A verdade está no método. Em 1941, quando lançado nos Estados Unidos, "Cidadão Kane", de Orson Welles, foi um fracasso de bilheteria. Hoje, é um filme que passa em todos os lugares. "Menino de Engenho", de Walter Lima, "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, "Macunaíma", de Joaquim Pedro, são filmes que passam hoje em todo o Brasil nas escolas, são matérias de estudos, de teses nas universidades, já se incorporaram ao nosso processo cultural. E é isso que interessa.
Veja — Como se chegou ao que constitui, vamos dizer, a fórmula cinema novo?
GLAUBER — Partimos de uma experiência de zero econômico e técnica com a ambição de construir um cinema internacional. Não no sentido de uma simples conquista de mercado econômico, mas no sentido de conquistar uma independência cultural. Negamos a fórmula de Hollywood, a nouvelle-vague do cinema francês e partimos de três fontes: o cinema de Humberto Mauro, o cinema revolucionário soviético e o cinema neo-realista italiano. Dessas três influências nasceu um tipo de cinema novo para o Brasil, daí o nome. Novo, independente de suas qualidades, radicalmente novo em sua natureza.
Veja — E suas relações com a Embrafilme? Você concorda com a política seguida por ela?
GLAUBER — Enquanto a Embrafilme luta pela ampliação do mercado brasileiro e trata de sua exportação, acho válido. Ela não cuida dos aspectos ideológicos. O aspecto político e moral dos filmes é tratado pela Censura de Brasília e desafio publicamente nesta revista o produtor ou cineasta que apresente queixa contra o dirigismo político ou psico-moral, em algum filme submetido à Embrafilme.
Veja — Você já pediu algum financiamento à Embrafilme?
GLAUBER — Do ponto de vista econômico e político, eu acredito na Embrafilme mas não faço filme com ela, me reservo esse direito. Não sou um produtor, não sou um cineasta.
Veja — Você não é um cineasta? Em que categoria profissional se enquadra então?
GLAUBER — Eu sou uma pessoa que se expressa através do cinema e da literatura, mas não tenho status profissional nem econômico. Não faço filmes com objetiva econômico. Para mim, o dinheiro é uma coisa negativa. Não articulo com dinheiro, mas sei materializar recursos financeiros, para fazer os filmes que quero.
Veja — Você é a favor da estatização?
GLAUBER — Não sou favorável à estatização integral porque as experiências de estatização nos países socialistas geraram uma tecnocracia. Os burocratas controlam o cinema, fazem a política do Estado e a expressão artística se destrói. A Embrafilme deveria ser uma mera produtora de filmes para atender às necessidades educativas que o Brasil precisa para o resgate cultural do povo. Acho que não deveria financiar cinema comercial.

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