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quinta-feira, outubro 23, 2008

Dirceu Herrero

Crônica fresquinha do amigo Dirceu Herrero diretamente para o nosso boteco!

Paciência

Cruzo a entrada do campo santo como se ela fosse uma passagem de volta ao passado. Os cemitérios devem ser os únicos lugares onde o tempo parece não ter importância. Um dia, não tive pressa e sinto saudades desta época feliz de minha vida. Passos lentos, observo a “última morada” de muitos e vou assimilando lições de vida. Um dia, os habitantes dali já tiveram pressa.

O céu nublado prenuncia chuva. Acendo as velas com dificuldade devido ao vento frio e constante da manhã. O fogo se alimenta do oxigênio. Mas, este em movimento, dificulta o trabalho de quem está disposto a velar uma alma.

Missão cumprida, sento-me no túmulo em frente e observo as velas acesas. Meus olhos variam. Ora fitam a viúva, que tira algumas pequenas sujeiras do túmulo; ora encaram com sincera emoção a foto sob a lápide, e ora miram as chamas das velas.

A cera, derretendo, se derrama sobre a vela como as lavas de um vulcão. Enquanto desce até o chão, vai perdendo a temperatura e a velocidade. Sem calor e sem energia, ela pára, deixando atrás de si desenhos, formas indefinidas.

A chama das velas queima devagar. Com calma, o que me faz pensar que isto a torna mais digna. Creio que as pessoas que não têm pressa também têm mais dignidade. É como se resistissem à filosofia da vida moderna, que condena a paciência, a reflexão e a contemplação, como se estas fossem sinônimos de improdutividade.

O tempo é mais condescendente com os pacientes. Para eles, a vida não passa tão rápida. É como se estas pessoas promovessem uma rebelião, enfrentando o tempo e não se deixando dominar por ele. Talvez sofram menos porque a natureza costuma ser mais cruel com os fracos.

Uma formiga sobe pelo túmulo, próximo das velas. Um sopro de vento muda a chama pro lado do pequeno inseto. Ele cai. Mas não morre. Caminha na direção contrária.

Aguardo a vela queimar totalmente. Uma forma de respeito à memória da alma que um dia emprestou o corpo que se encontra naquele túmulo. Uma homenagem a quem eternamente chamarei de pai.

Penso na vida. Em como mudamos com o passar dos anos. Das décadas. Eu gostava de mostrar minha independência paterna, contrariando as vontades de meu pai – invariavelmente diferentes das minhas. Já fui daqueles que não dão a mínima para cemitérios e muito menos para me barbear.

Mas, hoje, fiz a barba pensando no velho e em como ia gostar de me ver barbeado. Quanto mais o tempo passa, mais me aproximo de suas convicções. Até mesmo de suas manias. Seria uma forma de matar a saudade? De me parecer mais com ele? Ou será que estou amadurecendo?

Penso em uma última hipótese. Ela me agrada. Esta semelhança que se acentua é uma forma de nos eternizar. De enfrentar e de respeitar o tempo. De dizer a ele: você passou, mas nós continuaremos para sempre, em nossos gestos, em nossos rituais. Sem pressa.

A espera, acompanhada de ação, é uma virtude.

Sábado, 19 de outubro de 2008

Um comentário :

As. Imprensa - SBM disse...

Obrigado pela colher de chá, amigo Bulga!