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quarta-feira, julho 20, 2016

Qual o filme mais importante da história do cinema?

Título Original : Dois fatos importantes na história do cinema
Data: 17/Abr/98
Autor: Carlos Heitor Cony
Editoria: Ilustrada



Volta e meia, algum editor de segundo caderno inventa uma pesquisa sobre isso ou aquilo. Aí a turma se mobiliza e começa a ronda dos telefonemas buscando os palpiteiros disponíveis que, alguns mais, outros menos, têm a ver com o assunto. Foi assim que, tarde dessas, moça gentil, depois de se identificar como repórter, me pergunta qual o fato que eu considerava mais importante na história do cinema.
Numa enquete promovida por revista especializada que não mais existe, respondera há tempos a uma pergunta parecida: qual o filme mais importante da história do cinema? O universo pesquisado era de críticos, cineastas, intelectuais em geral. Indaguei sobre os filmes anteriormente citados, fiquei sabendo que a turma se concentrava nas obras que sempre são lembradas em sondagens semelhantes: "Kane", "Potenkin", "Oito e Meio", Chaplin, Bergman, Ford, Kurosawa, Rosselini, Visconti, De Sicca, Pabst, Lang, por aí afora.
Bem, eu poderia dizer um nome e pronto, ficava livre da pergunta e do problema. Mas, estava realmente disponível naquele dia e naquela hora. Não sabia o nome do filme mais importante da história do cinema, mas dava indicações.
Tratava-se de uma obra de Mazzaroppi, provavelmente dirigida por ele próprio. Depois de uma carreira comercial bem sucedida nos grandes centros, o filme fora exibido na cidade de Dores do Indaiá (MG), no único cinema local, que tinha o óbvio nome de Dorense. Até aí, nada demais.
Acontece que esse filme ficou em cartaz exatos dois anos e meio, com sessões diárias às 8h da noite e matinês aos sábados, domingos e feriados.
Durante dois anos e meio não houve necessidade de mudar a programação do Dorense: a sala estava sempre cheia, houve gente que viu o filme mais de cem vezes. O pessoal vinha em bandos, famílias inteiras comemoravam aniversários e eventos familiares vendo mais uma vez o mesmo filme. Foi assim a obra de arte bastante, única, sumo e resumo de tudo o que o homem geralmente busca na arte e no lazer.
Citei também outro fato importante que é páreo para esse, embora em cenário e sentido diferentes. Foi no Rio, no velho e tradicional Cinema Polytheama, no largo do Machado. Ficava a 50 metros do Cinema São Luiz, orgulho da maior distribuidora de filmes naquela época e que só lançava obras havia muito aguardadas e que nele ficavam por um tempo até serem distribuídas em outras salas.
O Polytheama era o oposto. Enquanto o São Luiz se jactava de seus mármores, escadarias e fontes luminosas, o velho cinema era um pulgueiro que só tinha de nobre o nome com y e th. Exibia programas duplos, às vezes triplos. A escória da produção B e C do cinema mundial, cópias em frangalhos, foco deplorável, calor de subúrbio no Senegal, essas coisas.
Mas vivia sempre cheio, público que pagava metade ou um terço do ingresso tabelado pela Sunab e podia passar de quatro a cinco horas vendo qualquer coisa que se mexesse na tela encardida e borrada por infiltrações de água.
Fácil avaliar esse público: domésticas com fuzileiros navais, desempregados, flanelinhas, camelôs, estudantes sem mesada e sem colégio. Pois bem, uma semana dos anos 60, deu um nó no sistema de distribuição e até hoje não se conseguiu apurar quem programou "2001 -Uma Odisséia no Espaço" para o Polytheama.
Mais por tradição do que por interesse, a sala encheu na primeira noite, horário nobre. O filme começou com os famosos acordes musicais que formaram a trilha musical da era espacial. A turma ficou séria, lisonjeada porque afinal estava vendo um filme importante que deveria estar passando no vizinho fidalgo, do outro lado da rua.
Como todos sabem, embora sendo uma obra-prima incontestada, o filme de Kubrick começa e termina meio confuso, a trama é complicada sobretudo no final. Até hoje, críticos conspícuos daqui e de além-mar não chegam a um acordo sobre aquele monólito negro que alguns sugerem ser o próprio Jesus Cristo e outros, mais modestos, acham que é a Pedra Filosofal procurada durante a Idade Média. Juntando tudo isso a um computador temperamental que enlouquece de ciúme ou de suspeitas, a obra é considerada hermética, para iniciados.
Bom, o pessoal do Polytheama, pego de surpresa, sem aviso prévio, aguentou o rojão com exemplar firmeza e paciente correção. Lá pelo fim, quando a coisa realmente se embaralha temporalmente, o homem fica velho de repente e de repente vira um feto, surge na tela o tal monólito, negro e nu. Nesse instante -e aí está o fato que citei como o mais importante da história do cinema -um sujeito lá das galerias, do porão mais alto e sórdido do Polytheama, quebrou o respeitável silêncio da platéia avisando: "Tô entendendo tudo!"
Recebeu uma salva de palmas que abafou os acordes finais, não me lembro se do "Danúbio Azul" ou do "Assim Falou Zaratustra". Todos ficaram aliviados porque o espectador anônimo, falando por si e pelos demais, achou que não entendendo estava entendendo -e é isso o que me parece mais importante não apenas no cinema, mas na obra de arte em geral.






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