RIO - No dia 31 de março de 1964, eu era um garoto de classe média de Copacabana. Tinha 14 anos de idade e voltava do Colégio Andrews, na Praia de Botafogo, quando chegaram as primeiras notícias sobre um levante em Minas Gerais. Eu vivia em um meio bastante conservador. Meu pai, na minha rua, era um dos poucos caras com pensamento liberal. Quase todos eram lacerdistas. Entre meus colegas de colégio, a maioria também era lacerdista. As notícias, naquele época, eram muito mais lentas. O tempo passava, e não existia nada de muito concreto. No dia do golpe, fui dormir sabendo que havia um levante militar, mas sem grandes preocupações. O dia seguinte, no entanto, acordou diferente. Foi feriado. Sem aula. País paralisado. Copacabana reagiu como sempre: todas as donas de casa foram aos mercados comprar feijão. Antes que qualquer coisa acontecesse, o melhor era abastecer a dispensa de casa.
Depois do almoço, fui ao cinema. Quando saí de casa, minha mãe me alertou: se acontecesse qualquer coisa na rua, eu deveria voltar correndo e não aceitar provocação. Na volta do cinema, vi carros comemorando, pessoas acenando com bandeiras brancas e nacionais. Aí eu entendi que a Guanabara tinha entendido que o Jango tinha caído. A classe média fazia festa.
A memória que guardo até hoje é a dos porteiros dos edifícios. Cabisbaixos, com o radiozinho de pilha no ouvido, tentando ouvir notícias.
Naquele caminho, voltando para casa, vi quem tinha ganhado e quem tinha perdido. E isso mudou toda a minha vida. Eu era um garoto de classe média com vocação para ser advogado. Naquele momento, passei a perceber que jornalistas, artistas e intelectuais começaram a resistir, e essas pessoas começaram a fazer a minha cabeça.
No mesmo momento, apareceu o cinema e surgiu “Deus e o diabo na terra do sol”, do Glauber Rocha, que é um grito de liberdade. Eu comecei a pensar: quero ser que nem eles. Logo depois, aconteceu o Festival de Cinema Amador, e eu pensei que poderia ser cineasta também. Aqueles caras tinham mais ou menos a mesma idade que eu!
Com isso, passei a ter uma atuação político-cultural. Montei cineclubes, comecei a ver e discutir filmes, a politizar minhas leituras e a frequentar o Teatro Opinião. Meu primeiro movimento como cineasta era caminhar em direção a uma resistência artístico-cultural ao regime. Primeiro, como plateia. A partir daí, foi uma conjugação de fatores que me levou a pensar o documentário e o cinema histórico como ofício.
Filmes sobre Juscelino e Jango
Fui para a França depois. Estudei Cinema e vi muitos filmes políticos de Chris Marker e Jean Rouch. Eles falavam da Guerra Civil Espanhola, da Resistência e da independência argelina. Vi como eles tratavam a História e queria fazer isso aqui no Brasil. Voltei para cá querendo fazer esse tipo de cinema. Aí, me juntei ao Antônio Paulo Ferraz, um amigo, e ele, com o irmão deles. Todos toparam investir em um filme que falasse sobre Juscelino Kubithschek.
Queria mostrar, em plena ditadura militar, que existiu um governo civil que promoveu o desenvolvimentismo. Os militares tinham como discurso que só com uma ditadura isso era possível. O filme saiu junto com a Anistia e funcionou. Foi um sucesso de bilheteria. A sociedade queria entender sua própria história.
Depois veio o caminho natural. Fiz “Os anos JK — Uma trajetória política" e tinha que falar sobre Jango. Era o momento de debater justiça social.
Esse é o caminho consciente que sempre segui. Minha obra é, basicamente, política. Estou sempre discutindo a realidade da História e acho que o cinema é um instrumento essencial. O golpe de 1964 me fez artista.
* Em depoimento a Raphael Kapa - O Globo
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