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quarta-feira, outubro 29, 2014

Raul de Leoni

  Um poeta de retaguarda
Publicado em 29/Out/95 no jornal Folha de São Paulo      
Autor:     Leyla Perrone-Moisés   

Amanhã (30/10) faz cem anos que nasceu Raul de Leoni, autor que ainda hoje incomoda a crítica
LEYLA PERRONE-MOISÉS
Especial para Folha

"Morre cedo os que os Deuses amam", disse Fernando Pessoa a respeito de Mário de Sá-Carneiro. Essa frase, pelo que diz e pela forma de dizer, conviria a um contemporâneo brasileiro dos dois poetas portugueses: Raul de Leoni, que morreu de tuberculose em 1926, aos 31 anos de idade.
Raul de Leoni é um poeta incômodo para a crítica e para a historiografia literária. Teve a infelicidade de publicar seu único livro ("Luz Mediterrânea") em 1922, ano divisor de águas nas artes brasileiras; de modo que seu livro, escrito anteriormente, já nasceu antigo. Leoni pertence àquele período indistinto e eclético das primeiras décadas do século 20, que em poesia tanto pode ser chamado de neoparnasiano, neo-simbolista como de pré-modernista, conforme se olhe para o passado ou para o futuro.

Deste período, a crítica costuma resgatar apenas um poeta: Augusto dos Anjos. Entretanto, sentimos um vago sentimento de injustiça quando relemos Raul de Leoni. Embora não possamos elevá-lo à categoria de poeta maior (sua obra é pequena, desigual e anacrônica), não seria justo descartá-lo como poeta menor. "Poeta autêntico", como o classificou Otto Maria Carpeaux e mais tarde Alfredo Bosi, é o qualificativo que melhor lhe convém. Leoni, diferentemente de tantos contemporâneos seus, não é frívolo, nem convencional, nem sentimental, nem palavroso. Do parnasianismo, tem o rigor formal; do simbolismo, adota, em outros poemas, o verso livre e divagante. Mas não é frio e acadêmico como os parnasianos, nem evanescente e precioso como os simbolistas. É um neoclássico muito particular, único, por muitos aspectos, em nossa poesia. Diz Andrade Muricy: "Raul de Leoni colocava-se na confluência de várias correntes, mas conservando autonomia perfeita".
Praticamente esquecido nos dias de hoje, Leoni foi unanimemente apreciado em seu tempo. Ronald de Carvalho, Nestor Vítor, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Agrippino Grieco, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, elogiaram sua poesia. "Foi aceito e festejado por todos", diz Andrade Muricy.
Embora constituída em grande parte de sonetos exatos, a poesia de Raul de Leoni não é lapidar, como a dos parnasianos; é cristalina, pela nitidez, pelo brilho discreto, pela sonoridade clara. A metáfora do cristal, presente em seus poemas, é a que ocorre mais frequentemente àqueles que falam de sua obra. Agrippino Grieco, em seu estilo florido e tagarela, encontra fórmulas muito saborosas para definir Leoni: "carrilhoneiro de pequenos sinos de ouro", "mão de rendeira, "versos incorpóreos", antes desenhados no ar que traçados no papel.
Surpreende, nessa poesia, a extrema simplicidade dos recursos no tratamento de temas filosóficos, psicológicos, estéticos. O tom é coloquial, o vocabulário é quase sempre comum. As imagens são elementares, tiradas dos aspectos mais gerais da natureza: árvores, folhas, flores, raízes, conchas. A métrica e a rima parecem acontecer por acaso, numa fala naturalmente ritmada. O resultado é altaneiro sem presunção e convincente sem ênfase. É por essa coloquialidade, esse poder de síntese e esse despojamento que Leoni é um poeta moderno.
Seduzem, em "Luz Mediterrânea", imagens de rara felicidade: "Os pinheiros pensavam cousas longas/ Nas alturas dormentes e desertas;" "a prata dos luares sedativos;" "a linha leviana das estradas;" "a memória volúvel das areias;" "mais leve do que a euforia de um anjo" etc. É nesses acertos verbais, nessa "naturalidade" dos achados que se reconhece o autêntico poeta. "Uma naturalidade de expressão melodiosa muito penetrante, uma espontaneidade impressionante, escreveu Sérgio Milliet a respeito dele. O melhor de Leoni, para a sensibilidade de hoje, não está em seus sonetos perfeitos, de elaborados fechos de ouro, mas em certos versos de ritmo encantatório e em certas imagens que, encontradas, parecem terem sempre estado ali. Essas imagens têm uma visualidade que se comunica como evidência.
Alguns o consideraram um poeta em quem o pensamento se sobrepõe à poesia, um filósofo versejador. Não é verdade e é fácil comprová-lo. Qual é o pensamento, ou a filosofia de Raul de Leoni? Resume-se a bem pouco, em extensão e em profundidade: a perseguição de um ideal, as decepções do mundo, a busca da serenidade na abnegação altiva, no recurso à ironia, ao sonho, e na fruição instintiva das alegrias da existência. Um vago platonismo, curiosamente pincelado com traços nietzschianos. Mas essa pouca filosofia é formulada com uma elegante precisão: "Não é preciso crer nas cousas, /basta amá-las, Sendo que amar é muito mais /que crer..."
Essa simplicidade de tom e essa justeza de ritmo, que nos incitam a reter de cor os seus versos, são a maior garantia de que Leoni é sobretudo poeta, alguém que faz com que as idéias adquiram vida nas palavras. O que é original nessa poesia, dentro do contexto brasileiro, é a capacidade de abstração, a ausência de sentimentalismo e de grandiloquência, a despersonalização que busca a universalidade, o domínio pleno e consciente de seu instrumento. Dessa discrição resulta um acento de autêntica emoção.
Embora original em nosso meio, Raul de Leoni é bem representativo de certas tendências de sua época, que morreram de morte súbita com a revolução modernista. No momento de sua concepção, essa poesia correspondia a aspirações estéticas e fundamentações ideológicas ainda muito ativas. Como explicar esse fulgor de uma "luz mediterrânea" num tempo de penumbrismo?
O próprio título da coletânea remete para a ideologia da latinidade, de origem francesa, que alimentou na virada do século obras tão diversas como as de Anatole France e de Paul Valéry, dos quais Raul de Leoni era leitor. A origem desse conceito tão forte quanto fluido, que se expressou politicamente tanto em escritores reacionários (Maurras) como em escritores progressistas (Anatole France), está na derrota da França para a Alemanha, em 1870, e no crescimento arrogante do Império Britânico. As reflexões sobre a decadência dos povos latinos coincidem com o decadentismo em arte. E provocaram uma reação inversa, a valorização das culturas mediterrâneas e o incentivo a seu renascimento. Veja-se, a esse respeito, o livro de Pierre Rivas, recém-editado pela Hucitec: "Encontro Entre Literaturas. França - Portugal - Brasil".
No início do século 20, todos os visitantes franceses que vieram ao Brasil (Anatole France, Clemenceau, Jaurès) saudavam o país como terra em que se antevia o futuro glorioso da latinidade. Em 1914, Paul Adam publicava seu livro de torna-viagem, "Les Visages du Brésil", no qual se refere às "faces dessas forças latinas que, em 400 anos, instalaram no Novo Mundo o espírito do Mediterrâneo, com toda a sua estranheza, todo o seu divino poder de criação."
Leoni bebeu dessas fontes. Jovem da alta burguesia carioca, afilhado do presidente Nilo Peçanha, diplomata e deputado "de segundo time" segundo ele mesmo, Leoni leu ou ouviu esses autores franceses e assumiu a tarefa de difundir aqui essa "luz mediterrânea". O que ficou dessa ideologia em sua obra é o que mais envelheceu e às vezes incomoda, pelo elogio da raça ariana e pelo eugenismo com ranços de Gobineau.
Embora entusiasta da latinidade, quando teve a oportunidade de viver como diplomata em Roma, Leoni abandonou o cargo e a carreira por ter ficado com "saudades de sua gente". Viver com sua gente, para ele, era frequentar a boêmia da Lapa e, depois de doente, conversar com os tropeiros e caipiras de seu sítio em Itaipava, imaginando que estes eram pastores virgilianos. Tudo indica que foi a doença e a morte precoce que salvaram Leoni do oficialismo e do academismo que o rondavam. Isolado, pelas circunstâncias, em seu retiro espiritual, o poeta pôde desenvolver o melhor que havia nele: a meditação existencial e a especulação metafísica, um humanitarismo sincero e a busca do essencial na expressão poética.
O orgulho da alma greco-latina era embaçado pelo ceticismo da época, resultando numa amargura aristocrática que irmanava Leoni, para além do Atlântico, com os poetas portugueses de "Orpheu", como ele defensores da Poesia e da Beleza (com maiúsculas) num tempo em que o papel das mesmas se torna duvidoso, e indecisos entre o decadentismo e o modernismo. Por coincidência de sensibilidade epocal, e não por influência direta, há toques de Pessoa e Sá-Carneiro na poesia de Leoni. Este prega um "epicurismo triste" como o do neoclássico Ricardo Reis, exalta a simplicidade e a naturalidade como Alberto Caeiro e sofre da crise do sujeito como Fernando Pessoa ele-mesmo.
Impossível não reconhecer a temática pessoana em versos como estes, de Leoni: "A alma da gente muda tanto nesta vida,/ Na sua história escrita sobre a areia,/ Que um dia, ao recordar-se de si mesma,/ Numa hora esquecida,/ Já nem se reconhece mais e sente,/ Estranhamente,/ Que tudo aquilo que ela está lembrando,/ São as recordações de uma alma alheia!..."
Ou não lembrar Ricardo Reis ("Tenho mais almas que uma/ Há mais eus do que eu mesmo"), quando lemos Leoni: "Alma estranha esta que /abrigo, Esta que o Acaso me deu, Tem tantas almas consigo, Que eu nem sei bem quem /sou eu."
Essa temática do eu dividido e perdido, embora característica da crise do sujeito na modernidade, tem uma longa tradição na poesia de língua portuguesa. Na mesma forma simples de quadras com versos de sete sílabas, ela começa no famoso poema de Sá de Miranda (século 16): "Comigo me desavim Sou posto em todo perigo; Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim."
E ressurge em Fernando Pessoa, como em Mário de Sá-Carneiro: "Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim."
Poeta da estirpe pessoana, buscando aliar o sentir e o pensar, Leoni aponta para as mesmas possibilidades de solução sugeridas pelo poeta português: o elogio do instinto, da naturalidade, da ingenuidade, da infância. Diz Pessoa: "Olha-me rindo uma criança E na minha alma madrugou, Tenho razão, tenho esperança Tenho o que nunca me bastou."
Leoni também se encanta com as crianças: "Eu tenho tanta pena das /crianças! (...) São toda a Humanidade que /renasce, Ingênua, simples e maravilhada, Como a primeira vez que /apareceu."
Há em Leoni, correlato à proposta de um neopaganismo, o sonho de um cristianismo alegre e sem culpa, como aquele que Alberto Caeiro personificou em seu irreverente Menino Jesus: "Sonho um cristianismo /singular (...) Um cristianismo sem renúncia /e sem martírios, Sem a pureza melancólica dos /lírios, Temperado na graça natural..."
Entretanto, "está para sempre envenenada a alma humana, como dizia Pessoa. Para os poetas que pensam, o sentimento simples se transforma automaticamente em pensamento complexo. Sobre eles, pesa a condenação do conhecimento, expressa de forma angustiada no "Fausto de Pessoa e num poema de Leoni, com palavras que parecem as mesmas: "Pensei demais, e agora sei Que tudo que eu pensei estava /errado... De tudo, então, ficou somente /em mim O pavor tenebroso de pensar, Porque as idéias nunca tinham /fim..."
Essa poesia carregada de "emoção filosófica (expressão de Rodrigo Mello Franco, retomada e comentada por Sérgio Milliet), tem uma qualidade universal e atemporal que lhe garante, senão a imortalidade em que não cremos mais, pelo menos aquele "longo assentimento de que falava Kant.
Pessoa resolveu o conflito entre as diversas tendências de sua personalidade e da estética de seu tempo multiplicando-se nos heterônimos. Ricardo Reis permaneceu clássico, Alberto Caeiro adotou a coloquialidade moderna, Álvaro de Campos incorporou todo o frenesi modernista e o Ele-mesmo ficou com as brumas simbolistas e a falsa simplicidade das canções tradicionais.
Leoni não teve a força ou o tempo necessários para ser diferente do que foi. Mas os fragmentos em prosa que deixou mostram, nele, a consciência dos dilemas estéticos de sua época, incluindo o reconhecimento da emergência de uma poesia diversa da sua, "extremamente sintética, intensa, dinâmica, livre, consistindo, quase, em pura sugestão, em que se condense, no recorte de uma imagem, todo um mundo de idéias associadas". Essa "arte de um homem que não pode perder tempo interior" seria a dos modernistas.
Assim como Leoni compreendia os modernistas em sua diferença, muitos modernistas o compreenderam. O reconhecimento do valor da poesia de Leoni não deve implicar nenhuma valorização nostálgica da poesia neoclássica em prejuízo das conquistas imediatamente posteriores das vanguardas, definitivas e de consequências infinitamente maiores para a poesia brasileira de nosso século. Mas também me parece descabido que desprezemos um autêntico poeta, ou fenômenos históricos como o neoclassicismo latinizante do início do século, em nome de uma vanguarda ela mesma já histórica e plenamente reconhecida.
Vistas deste fim de século, as fronteiras entre essas últimas manifestações neoclássicas ou decadentistas, estetizantes e metafísicas, e as primeiras manifestações modernistas só existem no esquematismo dos manuais literários. Na prática, essas tendências conflituosas coexistiram, com notáveis resultados, em poetas da grandeza de um Valéry ou de um Pessoa. E se manifestaram, com consequências bastante felizes, em nosso Raul de Leoni.
LEYLA PERRONE-MOYSÉS é ensaísta e crítica literária, autora de "Vinte Luas", entre outros
        MEFISTO      
Espírito flexível e elegante,
Ágil, lascivo, plástico, difuso,
Entre as cousas humanas me conduzo
Como um destro ginasta diletante.
Comigo mesmo, cínico e confuso,
Minha vida é um sofisma espiralante;

Teço lógicas trêfegas e abuso

Do equilíbrio na Dúvida flutuante.
Bailarino dos círculos viciosos,
Faço jogos sutis de idéias no ar
Entre saltos brilhantes e mortais.
Com a mesma petulância singular
Dos grandes acrobatas audaciosos
E dos malabaristas dos punhais..."
Extraídos de "Luz Mediterrânea" (1922)

        PARA A VERTIGEM!   
Alma, em teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na Vida um simples rodamoinho,
Formado dos encontros da torrente!
Moves-te porque ficas no caminho
Por onde as cousas passam, diariamente:
Não é o Moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...
Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário,
Entre forças que vêm de toda parte.
Do contrário, serás, no isolamento,
A espiral cujo giro imaginário
É apenas a Ilusão do Movimento!...'
Poemas de RAUL DE LEONI






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