Título: 'O escritor é por definição um outsider'
Data: 05/Fev/94
Autor: Eduardo Simantob
Editoria: Ilustrada
Folha de São Paulo
William Seward Burroughs (5 de fevereiro de 1914 – 2 de agosto de 1997) |
O escritor norte-americano William Seward Burroughs, que completa hoje 80 anos, já deixou de lado há muitas décadas a imagem de "junkie" que o fez famoso nos anos 50 e 60, e de onde extraiu o tema de seus primeiros livros. Mais dedicado às experimentações artísticas, continua, no entanto, preocupado com os efeitos sociais da droga. "A guerra contra as drogas é um pretexto sujo para reforçar o aparato policial em cima dos indivíduos", diz o escritor em entrevista exclusiva à Folha, feita por telefone, de sua casa em Lawrence, Kansas.
Nascido em 5 de fevereiro de 1914 em Saint Louis (EUA), neto e homônimo do inventor da máquina de calcular, William Burroughs teve uma juventude abastada, estudou literatura em Harvard e depois medicina em Viena. Em 1938, regressou aos EUA, onde atuou em várias profissões, de redator de uma agência de publicidade e detetive particular a exterminador de ratos e insetos.
Nessa época conheceu Allen Ginsberg e Jack Kerouac, os principais nomes do movimento poético e literário denominado "beat" da década de 50. Os dois eram bem mais jovens que Burroughs, que se tornou mentor intelectual de ambos, fazendo-os ler Kafka, Blake, Yeats, entre outros.
Foi pelo meio da década de 40 que começou a circular entre a fauna de "junkies" de Nova York, tornando-se viciado em opiáceos e inaugurando sua ficha policial. Mudou-se com a mulher, Joan Vollmer, para o Texas, onde faz uma plantação "experimental" de maconha. Com a polícia em seu encalço, transferiu-se para Nova Orleans e, um ano depois, para a Cidade do México.
Fascinado por armas de fogo, mata sua mulher por acidente em 1952, brincando de Guilherme Tell. Inicia então uma descida ao inferno da droga, que o leva à Amazônia em busca do Ayahuasca, ou Yage (conhecido hoje no Brasil como o Santo Daime), e depois, a se instalar em Tanger, no Marrocos. É nesse período que vai mais fundo no vício e que também toma a decisão de se curar da "doença".
Após tratar-se do vício, Burroughs entregou-se a todo tipo de experimentações artísticas. Na década de 60 trava amizade com o poeta e pintor inglês Brion Gysin, com quem desenvolveu a técnica dos cut-ups. O cut-up é um procedimento através do qual associam-se uma série de sentidos simultâneos, montando-os de forma a criar imagens as mais próximas possíveis da percepção humana, misturando sonhos, visões, sons e pensamentos.
Folha - Recentemente, foi lançado um disco do grupo de rap Disposable Heroes of Hipocrisy, no qual eles musicavam leituras suas. Qual a relação entre o seu trabalho e o rap?
Burroughs - Certamente há uma relação no que diz respeito ao questionamento do que se chama "valores estáveis", algo que está presente em todo o meu trabalho. E também na exploração da linguagem, eu me preocupo muito com inovações linguísticas. Eu diria que são esses os pontos de contato.
Folha - E qual a sua impressão sobre a adaptação para o cinema de "Almoço Nu" (lançado no Brasil com o título "Mistérios e Paixões")?
Burroughs - Eu gostei muito. Eu não tive nada a ver com o roteiro do filme, foi o próprio Cronenberg que o escreveu. Aliás, ele adora escrever seus próprios roteiros. E eu fiquei muito feliz com isso, eu jamais me atreveria a roteirizar "Almoço Nu". A maioria dos escritores parecem não perceber que filmes não são feitos para serem lidos. A elaboração de um roteiro é um serviço para quem entende precisamente da coisa.
Folha - No filme, Cronenberg mistura partes do livro com fatos da sua vida...
Burroughs - Sim, e ele também colocou partes de outros livros e contos. Mas a idéia das máquinas de escrever carnívoras e com vida própria é dele. Eu jamais imaginei isso. Nunca havia concebido a possibilidade de uma máquina de escrever ser um personagem (risos).
Folha - A técnica de escrever um roteiro me parece muito similar à técnica dos cut-ups. Estou certo?
Burroughs - Certamente. Fazer um filme significa trabalhar numa sala de montagem ("cutting room", literalmente sala de corte). Mas os cut-ups são uma idéia inovadora quando levados para a literatura.
Folha - Mas o senhor largou as experiências com cut-ups, ou elas evoluíram em alguma outra técnica?
Burroughs - Não, não dá para usar sempre uma mesma técnica pois ela pode funcionar bem em alguns casos, mas não em todos. Mas lembre-se que eu estava explorando o conceito de escrever num tempo igual a um vácuo. A vida é um cut up: quando você olha através da janela ou atravessa uma porta, a sua consciência está sendo cortada por fatores aleatórios. Isso é mais próximo dos fatos da percepção humana e, poderíamos dizer que somos inseridos e divididos em capítulos da nossa vida. A mesma coisa ocorre com a pintura. Alguém caminha em volta do quarteirão e, ao voltar, transpõe para uma tela o que ele viu e o que sente naquele momento. Essa pessoa está sendo atravessada pelo próprio conceito de tempo. Enquanto ele pinta, a cena está mudando, e os fatores tempo e mutação estão presentes sempre e em movimento.
Folha - O senhor costumava relacionar o vício em drogas com uma "incontrolável necessidade por imagens"...
Burroughs - Isso é uma coisa interessante, sem dúvida. Billie Holliday dizia que só teve certeza de que havia largado o vício quando parou de assistir televisão. Mas eu nunca tive uma necessidade indiscriminada por imagens. Na verdade, TV não significa nada para mim.
Folha - Mas hoje em dia nós somos bombardeados constantemente por imagens, seja em TV, outdoors, propaganda, etc. Por acaso o escritor William Burroughs se sente à vontade nesse universo?
Burroughs - Eu jamais me sentiria à vontade em qualquer universo (risos). O escritor é por definição um "outsider". Ele escreve sobre coisas que percebe como erradas... Vou lhe dar um exemplo: temos de um lado um homem condenado a 42 anos de prisão, sem apelação, por plantar maconha, uma droga perfeitamente inofensiva. Outra pessoa comete vários assassinatos e é libertada após dois anos de cadeia. Isso não faz sentido. As vezes, eu sinto que as pessoas no comando do planeta ficaram absolutamente loucas.
Folha - E por quê o senhor decidiu pintar?
Burroughs - Eu não decidi pintar. Eu tenho pintado há anos, não foi algo que aconteceu subitamente. Eu tenho feito muitos trabalhos com colagens, montando imagens desde 1960. Ao mesmo tempo, tenho feito experiências com armas de fogo, atirando em compensados de madeira e, juntando os resíduos, coloco-os num papel. Eu não tenho nenhuma formação, não sei desenhar nada, nem mesmo uma cadeira. Tudo sai das minhas mãos, é uma pintura automática. Não sei o que estou criando até que acabo de pintar.
Folha - Eu vi algumas fotos de telas suas cheias de buracos de balas. Por que atirar em sua própria obra?
Burroughs - Estou apenas introduzindo o fator aleatório, no mesmo sentido dos cut-ups. Se você não considera o aleatório, o acaso acaba tendo uma aplicação fixa, estática. Deve-se deixar o acaso penetrar na obra em algum ponto. Agora, isso não é nenhuma novidade em termos de arte, é como o trabalho de colagem, montagens; é andar por aí e trazer o que lhe vem através de sua percepção, atravessada por fatos do acaso. Eu recordo de uma exposição de fotografias na virada do século, e as pessoas acharam que aquilo era a morte da pintura. Uma conclusão precipitada, claro, mas isso certamente forçou os pintores a fazer algo diferente, a pintar algo que nenhum objeto mecânico pudesse fazer melhor.
Folha - Em sua obra, o senhor tenta expôr o que chamou de "a verdadeira criminalidade da sociedade contemporânea", ou seja, mecanismos estritos de controle cerebral em escala global. Onde o senhor vê esses mecanismos hoje em dia?
Burroughs - Eles se tornaram bem piores. A guerra contra as drogas é um pretexto sujo para reforçar o aparato policial em cima dos indivíduos. E em escala internacional. O fato é que eles fizeram a droga algo ilegal e, ao mesmo tempo, fizeram industrias bilionárias de droga em ambos os lados da lei.
Folha - Jack Kerouac e o senhor, apesar de amigos íntimos, expressam enfoques radicalmente distintos em suas obras. Até que ponto ele influenciou o seu trabalho?
Burroughs - Para começar, o título do meu primeiro livro, "Almoço Nu", foi ele quem deu. Além disso, a obra dele, assim como tudo que leio, me influencia. Mas, realmente, nossas maneiras são muito diferentes. Jack expressava uma ingenuidade inspirada em Thomas Wolffe e Whitman; ele estava sempre olhando para trás. Olhando para uma América antiga, a América do século 19. Você lê Kerouac e percebe que ele traz um espírito de liberdade americana que não existe mais, que está morto há muitos anos.
Folha - Na introdução de "Almoço Nu", o senhor disse que a "droga é a fórmula do monopólio e da possessão". O senhor poderia contemporizar essa afirmação?
Burroughs - Na verdade, eu nunca experimentei crack. Consumi bastante cocaína, mas na maioria das vezes, misturada com morfina e heroína. Nada que fizesse minhas mãos tremerem ou que cortasse meu apetite. E eu nunca havia ouvido falar em uma coisa como vício físico em cocaína. Os viciados que conheci consideravam cocaína um luxo, ao passo que morfina e heroína eram uma necessidade. Nunca experimentei síndromes de abstinência de cocaína. Mas essas drogas são de certa forma um meio de controle social, elas mantêm as pessoas nas cidades. É uma maneira de controlar a concentração urbana. Não só as drogas, mas também a política do "welfare state".
"Burroughs explorou terrenos proibidos", diz Allen Ginsberg
William Burroughs ainda estava se iniciando na vida marginal quando conheceu dois jovens recém-expulsos da Universidade de Columbia, em Nova York. O ano era 1944 e os EUA estavam vivendo a etapa final da Segunda Guerra, num esforço nacional que não dava espaço para muito questionamento. Esses dois jovens, porém, angustiavam-se romanticamente com a crueza do mundo e a falta de perspectiva numa sociedade democraticamente totalitária.
Jack Kerouac e Allen Ginsberg nem bem chegavam à vida adulta quando conheceram "mestre Bill". Amigos e companheiros de viagem desde então, suas obras se entrecruzam em diversos momentos e nas mais variadas situações. Kerouac morreu em 1969, deslocado em meio ao movimento que involuntariamente inspirou, afogando suas mágoas no vinho. Ginsberg continuou ativo e cada vez mais influente.
Há décadas atuando em movimentos por direitos humanos, liberação gay e ecologia, tem por profissão lecionar e escrever poesia. Aos 67 anos, de volta a Nova York após quatro meses palestrando na Europa, Ginsberg falou por telefone à Folha sobre a importância da obra de Burroughs. A seguir, trechos de suas declarações.
*
"Burroughs teve um grande efeito na cultura 'mainstream' norte-americana, mesmo sem saber. Há vários jovens escritores bastante influenciados em termos de construção de uma obra literária. Burroughs mostrou que um romance podia ser uma série de flashes, mosaicos e rotinas, ao invés de ser simplesmente uma narrativa linear. Outro ponto importante é a exploração de áreas então proibidas, como o homossexualismo, fantasia mágica, drogas, coisas muito na moda hoje em dia."
"Antes da revolução sexual dos anos 60 e 70, havia uma grande desinformação sobre esses temas, com os quais Burroughs lidava tão naturalmente como se respira. Mas acredito que o mais importante em toda sua obra é o combate à dignificação da burocracia, da censura e do estado policial, detectando os mecanismos de controle mental subliminares e de lavagem cerebral em escala global."
"Burroughs costuma dizer que 'o governo é a linguagem', ou seja, ele é conduzido por palavras, leis e decretos, jornais e declarações; quem controla a linguagem controla as mentes. Controle de pensamento é na verdade palavras e imagens, e Burroughs é um grande 'picturista'. Enquanto os intelectuais dos anos 60 e 70 procuravam extremos marxistas e maoístas, nós estávamos interessados em consciências alteradas, tentando encontrar soluções ecológicas ao invés de ideológicas."
Com tudo isso, no seu aniversário haverá apenas uma pequena festa em sua casa e eu não creio que o presidente Clinton o chamará na Casa Branca."
Nenhum comentário :
Postar um comentário