Esta coleção é simplesmente um pilar do terror moderno. São quatro filmes que não apenas definiram a última década do gênero, mas o transcenderam, tornando-se fenômenos culturais e pontos de partida para discussões profundas sobre sociedade, trauma e a natureza do medo. Analisar este "box" é analisar o que há de mais inteligente, ousado e aterrorizante no cinema contemporâneo.
Aqui está uma análise crítica detalhada dos filmes apresentados.
DISCO 1: Os Pesadelos de Ari Aster
Este disco é dedicado à obra de um dos autores mais singulares e implacáveis do terror moderno. Ari Aster não faz filmes para assustar, ele faz filmes para devastar. Suas obras são dissecações brutais do trauma, do luto e das dinâmicas familiares e românticas, usando o horror como um bisturi para expor as feridas mais profundas.
HEREDITÁRIO (Hereditary, 2018)
Hereditário não é apenas um filme de terror; é uma tragédia grega disfarçada de história de casa mal-assombrada. É um filme que começa em um nível de desconforto e dor e só desce mais fundo no abismo, sem oferecer alívio ou catarse fácil.
Análise Crítica: A genialidade de Hereditário reside em como ele funde o horror sobrenatural com um drama familiar insuportavelmente realista. O verdadeiro terror do filme, por grande parte de sua duração, não vem do demônio Paimon ou do culto que espreita nas sombras, mas do luto sufocante e da desintegração completa da família Graham. A dor é tão palpável que o sobrenatural quase se torna um alívio, uma explicação para o sofrimento que, de outra forma, seria sem sentido.
A direção de Aster é meticulosa e sufocante. Sua câmera se move com uma precisão deliberada, e o design de produção, especialmente as maquetes de Annie, transforma a casa em uma prisão psicológica, um palco onde os personagens são meros peões de um destino terrível e inescapável (o título, afinal, é a tese). E, claro, o filme é ancorado por uma das maiores atuações da história do terror: Toni Collette entrega uma performance visceral, crua e absolutamente aterrorizante como Annie, uma mulher desfeita pelo trauma. Hereditário é um filme difícil, punitivo, mas sua exploração do luto como a casa mal-assombrada definitiva o eleva ao status de obra-prima moderna.
MIDSOMMAR: O MAL NÃO ESPERA A NOITE (Midsommar, 2019)
| Director Ari Aster points Florence Pugh and her iconic frown in the right direction for a scene in Midsommar (2019) |
Se Hereditário foi o horror da escuridão e do confinamento, Midsommar é seu oposto radiante e agorafóbico. É um filme de horror que acontece inteiramente sob a luz do dia, em um cenário pastoral idílico, provando que o pavor não precisa de sombras para florescer.
Análise Crítica: Midsommar é, em sua essência, um filme sobre o fim de um relacionamento, disfarçado de folk horror. Ari Aster o descreveu como um "filme de término", e a jornada de Dani (uma performance extraordinária de Florence Pugh) é uma lenta e catártica libertação de um relacionamento tóxico e de um luto isolador. O horror da comunidade Hårga não está apenas em seus rituais brutais, mas em sua sedutora oferta de pertencimento. Para Dani, que se sentia completamente sozinha em sua dor, a empatia radical e coletiva do culto — eles choram com ela, gritam com ela — é uma força terrivelmente atraente.
Visualmente, o filme é deslumbrante. A estética vibrante, a simetria perfeita e os detalhes ocultos nos murais e runas criam um mundo imersivo e profundamente perturbador. Aster subverte as expectativas do gênero a cada passo. Em vez de escuridão, temos luz ofuscante. Em vez de uma "final girl" que escapa, temos uma "May Queen" que escolhe ficar. Midsommar é uma viagem psicodélica e perturbadora, um conto de fadas sombrio que argumenta que, às vezes, encontrar uma nova família pode ser a coisa mais aterrorizante de todas.
DISCO 2: Os Pesadelos Sociais de Jordan Peele
Este disco é dedicado ao outro grande autor do terror moderno, Jordan Peele. Se Aster explora o trauma pessoal, Peele usa as ferramentas do gênero — suspense, monstros, o bizarro — para dissecar os traumas coletivos da sociedade, especificamente as complexidades do racismo e da identidade na América.
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| Jordan Peele accepts Best Original Screenplay for ‘Get Out’ onstage during the 90th Annual Academy Awards |
CORRA! (Get Out, 2017)
Um filme de estreia que não foi apenas um sucesso, mas um terremoto cultural. Corra! redefiniu o que um filme de terror poderia ser no século XXI, provando que os monstros mais assustadores não são fantasmas ou demônios, mas o racismo liberal e sorridente que se esconde à vista de todos.
Análise Crítica: A genialidade de Corra! está em como ele traduz a experiência da microagressão e da ansiedade racial em uma linguagem de horror perfeitamente calibrada. O "Lugar Afundado" (Sunken Place) é uma metáfora visual brilhante para a paralisia e a falta de voz sentidas diante do racismo sistêmico. O horror não vem de supremacistas brancos de capuz, mas de uma elite branca "progressista" que não odeia os negros; pelo contrário, eles os cobiçam, desejando sua cultura, seu físico, sua "vantagem" — uma forma de racismo talvez ainda mais insidiosa.
Jordan Peele dirige com a precisão de um mestre do suspense, misturando momentos de pavor genuíno com um humor afiado e um comentário social incisivo. O filme é um "thriller social", um termo que o próprio Peele cunhou, e que abriu as portas para uma nova onda de horror com consciência política. Corra! é um filme-evento, uma obra-prima que é ao mesmo tempo um entretenimento de primeira linha e uma das análises mais inteligentes sobre o racismo na América moderna.
NÓS (Us, 2019)
Após o sucesso estrondoso e a clareza temática de Corra!, Jordan Peele entregou uma obra mais ambiciosa, enigmática e aberta a interpretações. Nós é um filme de horror que funciona em múltiplas camadas de alegoria, falando sobre dualidade, privilégio, a culpa da nação e o "outro" que, na verdade, somos nós mesmos.
Análise Crítica: Nós é um filme mais complexo e menos direto que seu antecessor. A ideia dos "Amarrados" (The Tethered) — duplos que vivem em túneis subterrâneos, espelhando as vidas de seus privilegiados correspondentes na superfície — é uma metáfora poderosa para a classe baixa esquecida, a consciência culpada da América ou o lado sombrio que todos nós reprimimos. O horror aqui é o da confrontação. "Quem são vocês?", pergunta a família Wilson. "Nós somos americanos", responde Red, em uma das falas mais arrepiantes do cinema recente.
A performance de Lupita Nyong'o em um papel duplo é simplesmente espetacular, criando duas personagens distintas e aterrorizantes. Peele constrói um universo rico em simbolismo (as tesouras, os coelhos, o "Hands Across America") e dirige as sequências de invasão domiciliar com uma tensão magistral. Embora sua mensagem seja mais ambígua, Nós é um filme mais expansivo em sua mitologia e em seu escopo. É uma obra que exige atenção e recompensa múltiplas visualizações, solidificando Jordan Peele não apenas como um grande diretor de terror, mas como um dos cineastas mais importantes de sua geração.



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